Inspeção flagra adolescentes algemados e queixas graves de tortura em unidades da Funase
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura destaca falta de estrutura mínima e série de problemas nos espaços socioeducativos de Pernambuco

Adolescentes algemados, indícios de tortura e estruturas físicas precárias - que até lembram antigas prisões e favelas. O relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), divulgado no começo da semana, não deixa dúvidas sobre as péssimas condições de unidades da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) em Pernambuco.
Mesmo sem superlotação, considerada na década passada o maior problema enfrentado para garantir a mudança de vida dos adolescentes em medidas socioeducativas, os investimentos para melhorias básicas e previstas em lei nas unidades seguem bem abaixo do necessário - e desafiam a atual gestão.
Uma das unidades inspecionadas, em 19 de abril de 2024, foi o Centro de Internação Provisória (Cenip Recife), localizado no bairro do Prado, Zona Oeste da capital pernambucana, voltado exclusivamente para adolescentes do sexo masculino. As equipes ouviram relatos de violência praticada pelos agentes socioeducativos.
"A equipe de inspeção presenciou diversas vezes adolescentes, incluindo o mais novo da unidade com 12 anos, passando algemados, como prática habitual e sem justificativa. Os adolescentes relataram que são frequentemente ameaçados e humilhados pelos agentes", apontou o relatório.
"Alguns mencionaram que os agentes lhes disseram que, se os encontrassem na rua, 'vão matar' e que 'na rua eu sou outra coisa'. Também relataram que o tratamento hostil e os xingamentos são comuns, especialmente no contexto de atividades como o futebol, quando a não participação é ameaçada como castigo", completou.
Na visita, os adolescentes foram flagrados sendo conduzidos com os braços algemados para trás. "Essa forma de contenção não apenas causa pressão física, mas também resulta em sofrimento considerável, configurando práticas que podem ser interpretadas como tortura, devido à dor deliberadamente infligida", apontou o MNPCT.
O relatório reforçou que o uso de algemas deve ser restrito a situações excepcionais, sendo proibido como forma de punição, conforme as normas do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e a Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal (STF).
Procurada pela coluna Segurança, a assessoria da Funase afirmou, em nota, que "não há qualquer registro de agressões físicas cometidas contra adolescentes na unidade".
"Tampouco foram recebidas denúncias formais por parte dos socioeducandos ou de seus familiares, o que causa estranhamento à instituição. Em casos de denúncias dessa natureza, a Corregedoria da Funase é imediatamente acionada para apuração rigorosa dos fatos e adoção das medidas cabíveis", disse.
Sobre o uso de algemas, a Funase afirmou que a orientação é que a medida "seja aplicada apenas em situações excepcionais" e que "deve ser registrada e justificada por escrito, com informações detalhadas do ocorrido".
FALTA DE ESTRUTURA, LIMPEZA E DE ITENS BÁSICOS
Segundo o documento, a unidade do Cenip conta com 15 quartos, que se assemelham a celas.
"As portas são gradeadas e fechadas com tranca e cadeado. O uso de grades e de arquitetura hostil, que transmitem uma sensação de opressão e repressão, são vedados pelas diretrizes nacionais e internacionais", argumentou.
A inspeção identificou locais sujos, com paredes descascadas, presença de mofo, vazamentos de água e partes em estado de deterioração. O mau cheiro de urina e de esgoto também chamou a atenção.
"A direção informou-nos que a unidade não dispõe de uma equipe de limpeza ou de qualquer pessoa encarregada de realizar esse serviço nos quartos."
A equipe verificou que os quartos eram pequenos, sem iluminação natural e sem ventilação cruzada. "As condições de higiene foram observadas como precárias, com o ambiente sujo e insalubre. Os adolescentes relataram calor intenso e a proibição de uso de ventiladores", apontou o relatório.
Eles relataram a falta de vestuário, chinelo, toalha, roupa de cama, itens de higiene e alimentação.
Em nota, a Funase declarou que "enquanto a contratação de uma empresa especializada para os serviços de limpeza das unidades não é concluída, a demanda vem sendo atendida por participantes do Programa Patronato, que executam as atividades sob acompanhamento e supervisão".
Afirmou ainda que "novos equipamentos estão em processo de licitação para ampliar essa estrutura de ventiladores".
BAIXOS SALÁRIOS PARA AGENTES
A inspeção também ouviu queixas dos agentes socioeducativos da unidade. Eles reclamaram dos baixos salários, com um valor inferior a dois salários mínimos, e disseram que não possuem plano de carreira.
Eles contaram que obedecem a uma escala de plantão de 24h de trabalho por 72h de descanso. Para o MNPCT, essa carga horária é "um gargalo para que tenham um segundo trabalho, muitas vezes como seguranças privados, não se dedicando integralmente ao trabalho de agentes socioeducativos".
Os agentes informaram ainda que não recebem ticket de refeição e que as refeições disponibilizadas para eles nas unidades são de baixa qualidade. Também não recebem adicional noturno ou adicional de insalubridade.
UNIDADE FEMININA DA FUNASE
As equipes também realizaram vistoria no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) Santa Luzia, no mesmo bairro. A unidade recebe adolescentes do sexo feminino. Os problemas encontrados são praticamente os mesmos - inclusive de uso inadequado de algemas, segundo o relatório.
"Os quartos são mal iluminados, sem ventilação cruzada e abafados. Os colchões estavam em péssimas condições, consistindo apenas em espumas cortadas. A limpeza dos ambientes era realizada pelas próprias adolescentes, já que não há equipe de limpeza contratada na unidade", apontou o documento.
Os técnicos destacaram que a infraestrutura da unidade possui características de ambiente prisional, com grades no entorno e arquitetura hostil e cores opressoras.
Durante as entrevistas, as adolescentes relataram situações de violência física, ameaças, xingamentos, deboches e tratamentos ríspidos por parte de servidores do corpo técnico e agentes socioeducativos.
O documento citou, por exemplo, o caso de uma adolescente que teria sido agredida por três agentes socioeducativos masculinos.
"Ela relatou ter recebido um murro nas costelas, sido jogada no chão e algemada. Além disso, um dos agentes pressionou seus joelhos contra seu peito, restringindo sua respiração. Posteriormente, a adolescente foi submetida a um castigo de isolamento por 15 dias, em um momento de extrema fragilidade", indicou o relatório.
A adolescente relatou aos técnicos que, durante o isolamento, ainda foi arrastada pelos cabelos ao reclamar da situação e ameaçada de ser transferida para unidade no interior de Pernambuco.
O MNPCT notificou a direção, a juíza responsável e o Ministério Público sobre o ocorrido.
"A adolescente não recebeu acompanhamento jurídico, nem da unidade ou Defensoria Pública. Tal relato configura suposta prática de tortura, além de tratamento cruel, degradante e desumano", destacou o documento.
A Funase negou ter conhecimento do caso de violência. Em relação à presença de agentes do sexo masculino em unidades femininas, a direção reconheceu que a Resolução nº 119/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) orienta que essas funções sejam exercidas preferencialmente por mulheres. Mas argumentou que, no entanto, não há restrição legal sobre a atuação dos homens.
"Ainda assim, a Funase tem o compromisso de seguir essa diretriz, garantindo que a maior parte do quadro de funcionários seja composta por mulheres. Atualmente, no Cenip Santa Luzia, atuam 21 agentes mulheres e 15 homens. No Case Santa Luzia, são 35 mulheres e 13 homens, todos lotados conforme suas atribuições legais e respeitando as normas de segurança previstas", informou.