A nova face da gordura no fígado: uma epidemia silenciosa que já atinge 4 em cada 10 adultos
Sem causar sintomas, a gordura no fígado se espalha de forma silenciosa e pode abrir caminho para inflamação, cirrose e até câncer hepático
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A gordura no fígado (ou esteatose hepática, no termo médico) deixou de ser um problema restrito a quem bebe demais. Hoje, ela é o reflexo mais visível da crise metabólica do nosso tempo: alimentação ultraprocessada, noites mal dormidas, pouco movimento e muito estresse. O resultado? Uma epidemia silenciosa que já atinge quase 40% da população adulta.
O que muita gente encara como uma "besteirinha" no exame de ultrassom de rotina pode, na verdade, ser um grande sinal de alerta. A esteatose é o primeiro passo de um processo que, se não for controlado, pode evoluir para inflamação, cirrose e até a necessidade de um transplante de fígado.
O assunto será debatido, no próximo dia 5 de novembro, a partir das 7h30, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE), durante a edição pernambucana do Brazilian Mash Road. O evento, itinerante e pioneiro, conecta cirurgiões bariátricos e hepatologistas para discutir estratégias de diagnóstico e tratamento da doença esteatótica metabólica (gordura no fígado) e seus impactos na saúde.
O encontro é apoiado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) e pela Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH).
A doença hepática associada à disfunção metabólica (conhecida pela sigla MASLD, do inglês) é atualmente a condição mais comum que afeta o fígado. Ela surge como consequência direta do desequilíbrio do metabolismo, muitas vezes ligado à obesidade, resistência à insulina, pressão alta, colesterol elevado e diabetes tipo 2.
Nos estágios iniciais, a doença hepática associada à disfunção metabólica costuma passar despercebida, sem causar sintomas. Mas, silenciosamente, pode evoluir para inflamação do fígado, cirrose e até câncer hepático: um caminho que começa de forma discreta, mas que exige atenção antes que seja tarde.
"A doença hepática associada à disfunção metabólica é a principal causa de doença hepática crônica no mundo e está se tornando a principal indicação para transplante hepático. É um assunto que exige planejamento de ações de prevenção e tratamento", explica a cirurgiã do aparelho digestivo do HC-UFPE Clarissa Noronha, organizadora do evento.
O evento contará com a participação de especialistas de referência nacional, a realização de cirurgias bariátricas metabólicas ao vivo, com avaliação hepática em tempo real (FibroScan - equipamento utilizado na avaliação da rigidez hepática) e integração multidisciplinar entre cirurgia e hepatologia.
Na parte da tarde, das 13h às 18h, estão programadas as cirurgias bariátricas metabólicas ao vivo, com os médicos Álvaro Ferraz, Clarissa Guedes, Flávio Kreimer e Luciana Siqueira.
Será realizada uma biópsia hepática ao vivo conduzida por gastroenterologistas e hepatologistas no bloco cirúrgico do hospital. Após 30 dias, os participantes receberão uma tabela com os resultados dos casos, com todos os dados: scores, medições do Fibroscan e laudos histopatológicos das biópsias hepáticas.
As vagas são limitadas. A inscrição é gratuita, é só acessar o formulário neste link.
O foco agora é o fígado
O tema também ganhou destaque durante o 25º Congresso Brasileiro de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), realizado na última semana em Foz do Iguaçu. Moderada pelo cirurgião Fábio Viegas, a sessão contou com debatedores de diversas regiões do País. Entre eles, Flávio Kreimer, do HC-UFPE, e que realizará cirurgias bariátricas metabólicas ao vivo na edição pernambucana do Brazilian Mash Road.
Os participantes concordaram que a esteatose hepática não é apenas consequência da obesidade, mas parte ativa do processo inflamatório e metabólico que precisa ser tratado de forma ampla. O debate reforçou a necessidade de abordagem integrada entre cirurgia, hepatologia e nutrição.
"Muito se pergunta se pacientes com doença hepática, incluindo doença gordurosa do fígado (esteatose), fibrose ou até cirrose, podem ser candidatos à cirurgia bariátrica metabólica. A resposta é que o paciente deve ser avaliado e preparado, mas a grande parte desses pacientes vai se beneficiar muito de um procedimento como esse", explicou Flávio Kreimer.
Durante o congresso, a cirurgia bariátrica foi destacada como uma ferramenta importante para se evitar a falência hepática.
"É essencial diagnosticar o grau de esteatose e o grau de fibrose para preparar o paciente da melhor forma e garantir que ele possa 'colher os frutos' de uma cirurgia", acrescentou Flávio Kreimer.
Assista a videocast sobre o tema:
Nova face da gordura no fígado
O perfil da gordura no fígado mudou; e muito. Durante participação do 63º episódio do videocast Saúde e Bem-Estar, do JC, o médico radiologista Fernando Gurgel, do Centro Diagnóstico Lucilo Ávila, destacou que atualmente a divisão entre "doença hepática alcoólica" e "não alcoólica" não existe mais.
"Hoje, essa divisão já não faz tanto sentido. A esteatose está muito mais associada a alterações metabólicas do que ao consumo de álcool", explicou Fernando Gurgel, que é presidente da Sociedade de Radiologia de Pernambuco. Essas alterações incluem diabetes, resistência à insulina e o consumo excessivo de carboidratos refinados, ultraprocessados e gorduras ruins.
A incidência impressiona. "Cerca de 38% dos adultos têm esteatose hepática. E entre as crianças, esse número chega a quase 14%", alertou o médico.
Consequências ocultas da gordura no fígado
Também durante o videocast, a endocrinologista Lúcia Cordeiro, mestre em Medicina Interna e PhD em Cirurgia da Obesidade, ressaltou que a esteatose costuma ser subestimada justamente por não apresentar sintomas nas fases iniciais. "Quando fazemos o famoso check-up, o exame de enzimas hepáticas pode vir normal e, mesmo assim, o fígado já pode estar doente", disse.
O problema é o que vem depois. A gordura acumulada pode causar inflamação crônica (a chamada esteato-hepatite). Com o tempo, isso evolui para fibrose (uma espécie de cicatriz no fígado) e, em casos mais avançados, cirrose. "Pacientes com obesidade, diabetes e síndrome metabólica podem evoluir para cirrose mesmo sem nunca terem bebido uma gota de álcool", reforçou a endocrinologista.
Mas o perigo da esteatose vai além do fígado. A presença de gordura hepática está ligada a uma inflamação sistêmica que afeta o corpo todo. "A esteatose é só a ponta do iceberg de uma doença metabólica muito mais ampla", ressaltou Fernando. E fez um alerta contundente. "A maioria dos pacientes não morre de doença do fígado. Eles morrem de câncer de mama, acidente vascular cerebral (AVC) ou doença cardíaca, porque o problema é metabólico."
Reversão e tratamento
A boa notícia é que o fígado tem uma incrível capacidade de regeneração. Com mudanças no estilo de vida, é possível reverter grande parte do dano. A dieta mediterrânea (rica em fibras, frutas, legumes, azeite de oliva e oleaginosas), com menos carne vermelha e ultraprocessados, é importante para o paciente que precisa cuidar da saúde do fígado.
A perda de peso é o ponto-chave: uma redução de 10% do peso corporal já diminui significativamente a gordura no fígado. E com 15%, é possível reverter parte da fibrose. "Já vi pacientes eliminarem toda a gordura hepática em apenas 15 dias, só com mudança alimentar", contou Fernando.
Além das mudanças no estilo de vida, novos medicamentos como a semaglutida (Ozempic) e a tirzepatida (Mounjaro) têm mostrado resultados promissores. Estudos com biópsia confirmam que eles ajudam não apenas na perda de peso, mas também na redução da inflamação e da fibrose hepática.