Epidemia da moto: sinistros explodem e colapsam o SUS; 'genocídio' do asfalto ocupa 70% dos leitos de trauma no Brasil
Reportagem revela que sinistros de moto sobrecarregam hospitais, tiram leitos de cirurgia e mutilam jovens, afetando saúde, previdência e economia
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Nesta reportagem especial, com texto da jornalista especializada em saúde Cinthya Leite e fotos de Jailton Jr., convidamos você, leitor, a acompanhar uma investigação sobre a escalada dos sinistros de trânsito envolvendo motocicletas. É uma realidade que tem transformado os corredores e os leitos dos hospitais em verdadeiros retratos da urgência.
Durante um processo intenso e criterioso de apuração, que durou 30 dias, analisamos dados de instituições médicas e órgãos públicos, conversamos com especialistas e conhecemos casos de pessoas que sofreram ferimentos graves, ficaram com sequelas e foram internadas para tratamento prolongado após os traumas sofridos.
O resultado dessa apuração é um retrato duro de um País em movimento, mas ferido: uma crise que atravessa o asfalto e chega aos hospitais, ao cobrar um preço alto em vidas, recursos e tempo; e que exige respostas dos governantes à altura de sua gravidade.
Colapso anunciado: sinistros de moto consomem leitos e recursos da Saúde Pública no Brasil
Ao longo destes 10 meses de 2025, o Hospital da Restauração (HR), maior emergência pública do Norte e Nordeste que fica no Recife, já atendeu a marca de aproximadamente 3.000 vítimas de sinistros de trânsito que envolvem motocicletas. Já Hospital Miguel Arraes (HMA), referência em ortopedia e traumatologia, localizado em Paulista (município do Grande Recife), ofereceu assistência a 806 pessoas este ano, até setembro, pelo mesmo motivo.
Esses são apenas dois cenários específicos, com dados que representam a dimensão de uma crise de saúde pública nacional que sobrecarrega o sistema hospitalar, especialmente o Sistema Único de Saúde (SUS).
Nos últimos 30 dias, a reportagem do Jornal do Commercio levantou e analisou dados dessa natureza, conversou com especialistas sobre a escalada de sinistros de trânsito com motocicletas e conheceu casos de pessoas que sofreram ferimentos graves, ficaram com sequelas e foram internadas para tratamento prolongado após os traumas sofridos.
Ao darmos o zoom nas estatísticas de todo o Estado de Pernambuco em 2024, foram registradas 36.026 notificações de ocorrências que envolvem motocicletas nas 18 unidades sentinelas do Estado (serviços responsáveis por notificar compulsoriamente sinistros de trânsito). Entre as vítimas, 28.036 mil eram homens e 7.955 mulheres. O número de sinistros apresentou crescimento mês a mês, ao longo do ano de 2024, o que reforça a tendência de expansão de casos: em janeiro, foram 2.789 notificações; em dezembro, o número saltou para 3.512.
Diversos fatores contribuem para as ocorrências com moto. Entre as notificações no Estado, 34,8% envolviam condutores sem habilitação, 23,2% das vítimas não utilizavam capacete, 20,6% dos sinistros ocorreram devido ao excesso de velocidade e 12,2% envolveram consumo de álcool pelo condutor.
Sobre a evolução dos pacientes, nas 72 horas seguintes ao sinistro, 22,2% permaneceram internados. Segundo médicos, esse período inicial registra apenas parte das complicações, que podem se manifestar posteriormente. Ou seja, o quadro tende a se tornar mais grave com o passar dos dias de internamento. Esses números estão no boletim Sistema de Informação sobre Acidentes de Transporte Terrestre (Sinatt), divulgado pela Secretaria de Saúde de Pernambuco (SES-PE).
Os dados e relatos apontaram para uma realidade alarmante, e ninguém vivencia isso de forma tão intensa quanto os profissionais que lidam com o problema diariamente.
No dia em que marcamos a entrevista sobre o tema no Hospital da Restauração, o diretor da unidade, o médico cirurgião de trauma Petrus de Andrade Lima, chegou atrasado. O motivo do engarrafamento que o prendeu no caminho era o mesmo tema da conversa que teríamos: um sinistro envolvendo motos, com vítimas em atendimento.
Quando finalmente atravessou a porta da maior emergência pública do Norte e Nordeste para nos receber, o médico comentou sobre o episódio e já iniciou a fala. “O sistema está em evidente e precisamos chamar a atenção para esse problema. São sinistros que crescem de forma geométrica, exponencial.”
A constatação não é retórica. No Hospital da Restauração, referência nacional em trauma, o volume de notificações aumenta em cerca de mil casos a cada ano. Para ele, o cenário resume um fenômeno que há muito extrapolou as estatísticas. “Assistimos ao impacto das motocicletas sobre o sistema público de saúde, sobre os profissionais que tentam manter o atendimento e sobre as famílias que dependem dessas vidas interrompidas”, destaca Petrus.
O problema, reconhece o médico, tem múltiplas causas. O transporte público precário empurra a população para a moto, mais barata e ágil; as vias são inadequadas; e a fiscalização, insuficiente. A soma desses fatores tem produzido um crescimento que se tornou insustentável para o trânsito, para os hospitais e para o País.
A dor pessoal e a luta pela sobrevivência
Internado no Hospital da Restauração, Abraão Távora, 33 anos, trabalhava como repositor de mercadorias em loja. Ao ficar sem o emprego, ele resolveu trabalhar como mototaxista, pois já era condutor de motocicleta desde a adolescência. Mas, na segunda quinzena do mês de setembro, ele sofreu vários traumas após uma colisão no bairro Cidade Tabajara, em Olinda, município do Grande Recife.
"Já piloto moto há muito tempo, e antes eu já tinha passado por uma ocorrência, mas estava na garupa, não era o condutor. Dessa última vez, tudo aconteceu enquanto eu pilotava. Minha moto bateu na placa de uma parada de ônibus. Parei, tentei ver o retorno na rodovia, mas escorreguei na pista. E depois disso, não me lembro de nada mais. Tenho certeza de que foi Deus quem me livrou", relata Abraão.
Ele recorda que só acordou no corredor do hospital e estava bem agitado. "Fraturei a perna esquerda, quebrei parte do maxilar e levei uma pancada na base do crânio, que me prejudicou bastante. Vou passar por cirurgia", conta Abraão, pai de uma menina de 2 anos, um menino de 9 anos e outro de 5 meses. Com a colisão, ele manifestou uma reação conhecida como 'sinal do guaxinim' - um hematoma ao redor dos olhos que pode indicar uma fratura na base do crânio, especialmente se surgir dias após um traumatismo craniano.
"Minha esposa não trabalha. Minha família não quer que eu volte a pilotar moto, e eu estou sentindo muito por ter perdido o aniversário de 2 anos da minha filha por estar internado. Tenho muitas saudades deles e quero voltar para casa. Mas eu aprendi que, com a moto, o corpo da gente acaba servindo de para-choque. É muito perigoso."
O crescimento que não cabe mais no hospital
Nos corredores do Hospital da Restauração, há uma sensação de saturação que transcende os leitos de enfermaria e terapia intensiva (UTI). A explosão de casos é tamanha que, segundo Petrus, o número de notificações cresce de forma acelerada. O hospital é o que o Ministério da Saúde chama de “hospital sentinela”, responsável por notificar compulsoriamente sinistros de trânsito. Longe das planilhas e gráficos, vemos também um panorama que se assemelha a um campo de guerra.
“Mais de 70% dos nossos leitos de traumatologia estão ocupados por vítimas de moto”, lamenta o médico. “Eu tenho vagas de UTI ocupadas por pessoas envolvidas em sinistro de moto, e não posso abrir vaga para outras cirurgias. Poderia estar com pacientes de câncer, mas estou com politraumatizados por sinistros que envolvem motos.”
Longa espera pelo 'segundo tempo cirúrgico' após traumas da moto
O vigilante João Quirino da Silva, 57 anos, chegou desacordado ao Hospital da Restauração no fim de agosto. "Só acordei no dia 2 de setembro. A colisão que meu deixou ferido aconteceu no município de Feira Nova (Agreste de Pernambuco), quando uma outra moto bateu na minha por trás. Vim de lá para o hospital, já entubado na ambulância", relata.
João Quirino diz que, no momento do sinistro, estava de capacete. "Eu fraturei a perna, o antebraço, o joelho e o quadril, e já passei por cirurgia. O que sei do outro motorista é que ele não aguentou e faleceu."
Após algumas operações, João Quirino aguarda o "segundo tempo cirúrgico". Em situações de trauma grave, uma primeira cirurgia (primeiro tempo) é realizada com o objetivo de salvar a vida e estabilizar o paciente. O segundo tempo cirúrgico, então, ocorre após a estabilização do quadro geral e a melhora das condições clínicas do paciente.
"Eu já pilotava moto há 40 anos e sempre soube que é muito perigoso. Sempre andei com cuidado, devagar, e até já tinha visto problemas graves com colegas, mas nunca tinha acontecido nada comigo, até então. Estou até pensando em vender a moto agora."
A conta não fecha. Nem nos leitos, nem no orçamento.
“O dinheiro não é infinito, não dá em árvore. O volume de sinistros que envolve motos está consumindo a saúde pública”, lamenta Petrus. Uma pesquisa nacional inédita da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT) confirma o que o médico vê todos os dias na unidade de saúde: 70% dos hospitais de traumatologia do País estão superlotados por causa dos sinistros que envolvem moto.
O levantamento, realizado em 100 hospitais de diferentes regiões do País nos últimos seis meses, mapeou o atendimento a traumas que envolvem veículos de duas rodas em hospitais públicos, privados e filantrópicos em todo o Brasil.
A pesquisa revela um panorama crítico que reforça a importância da campanha nacional Na moto não mate, não morra, lançada pela entidade para alertar a sociedade sobre os graves impactos sociais e de saúde pública causados pelos sinistros de motos.
Quase metade das cirurgias eletivas, segundo o estudo da SBOT, é cancelada porque os leitos estão ocupados com as vítimas das motocicletas. Sete em cada dez pacientes permanecem internados por mais de uma semana, e um em cada cinco precisa ser reinternado por complicações.
É o sistema inteiro que opera no limite e paga um preço alto por uma epidemia evitável.
“Os jovens que deveriam sustentar o País estão morrendo”
A crise, segundo Petrus, extrapola a mobilidade e a saúde, pois é também econômica e social. No Hospital da Restauração, entre 60% e 70% das vítimas são homens jovens, de 20 a 40 anos, a faixa mais produtiva da sociedade. “É a população economicamente ativa que está morrendo ou se afastando do trabalho. São pessoas que deveriam estar sustentando o País.”
A pesquisa da SBOT também confirma: a maioria das vítimas é do sexo masculino, e 43% têm entre 20 e 29 anos. A dor, no entanto, vai além das estatísticas. Entre os sobreviventes, 82% relatam dor crônica, 69,5% ficam com deformidades e 35% sofrem amputações. “Essas pessoas carregam sequelas permanentes, como encurtamento de membro ou rotação viciosa (condição em que um osso quebrado se “cura” em uma posição anormal, como torto ou rotacionado). Muitas jamais voltarão à rotina que tinham”, descreve o médico.
Há também um novo perfil emergente: o das mulheres. “Antigamente era raro. Hoje, com o aumento dos transportes por aplicativo, vemos mais mulheres pilotando ou como passageiras. E elas também se machucam.”
O socorro que não dá conta
Enquanto o Hospital da Restauração tenta abrir espaço entre leitos lotados, nas ruas o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192) corre contra o tempo.
O médico Leonardo Gomes, coordenador geral do Samu Metropolitano do Recife, traduz a dimensão do problema. “Cerca de 92% dos sinistros de trânsito que atendemos envolvem motocicletas. De cada dez saídas (de ambulâncias), nove são por ocorrências que envolvem moto. Isso consome muito da resposta do Samu”, diz Leonardo. Ele ressalta que lamenta ver histórias de vida interrompidas por segundos de descuido.
"Grande parte dos sinistros está ligada à forma de conduzir o veículo: manobras arriscadas, negligência diante da proteção. Muita gente pilota de sandália, chinelo pendurado, às vezes nem calçado usa", afirma Leonardo.
As cenas são repetitivas: jovens entre 20 e 40 anos, fraturas complexas, amputações. “As lesões mais comuns são em membros inferiores e superiores. Muitas vezes são fraturas expostas, que levam à amputação. Também temos muitos casos de politrauma no abdômen e no tórax”, acrescenta.
Nos casos mais graves, o destino é o mesmo em Pernambuco: o Hospital da Restauração (HR). “Quando há trauma de cabeça e perda de consciência, o paciente precisa ir direto para o HR, porque é onde tem neurocirurgião e ortopedista. São pacientes que demandam muito tempo de internação, seja em UTI, enfermaria ou cirurgia.”
O custo do sinistro de moto para famílias do interior
A dona de casa Maria Edjailma Herculano, 39 anos, acompanha o filho João Vitor, 19 anos, na enfermaria de trauma do Hospital da Restauração. "Moro em São João (cidade do Agreste pernambucano, a cerca de 210 quilômetros da capital) e vim para o Recife acompanhar meu filho. Ele já pilotava moto há muito tempo, mas dessa vez ele se feriu voltando do trabalho; ele é auxiliar de serviços gerais. Ele fraturou o fêmur e a mandíbula. Uma outra pessoa, que estava de moto, entrou na pista e bateu nele", conta.
A mãe de João Vitor relata que ela sempre teve muito medo de moto. "Eu vivia com o coração na mão. Agora, só espero que ele reflita sobre o que aconteceu e não volte mais a andar de moto."
O operador de máquinas Otávio José Batista, 27 anos, morador de Paudalho, Zona da Mata Norte de Pernambuco, também passou seis dias internado no Hospital da Restauração. O sinistro ocorreu num domingo, dia em que mais ocorrem notificações na unidade de saúde por ocorrências que envolvem moto. "Fui levado numa ambulância do Samu. Quebrei o queixo e tive bastante sangramento. Já me envolvi em colisões outras vezes, mas dessa vez eu senti um medo muito maior."
Os aplicativos e a carona que custa caro
A chegada do transporte por aplicativo ampliou o problema. Antes, o foco eram as “cinquentinhas”, as pequenas motos de 50 cilindradas. Agora, é a carona que preocupa.
“O número de sinistros aumentou com os aplicativos. Agora temos o condutor e o passageiro, e muitas vezes o capacete é inadequado. Na hora da colisão, o passageiro não sabe como se proteger. O condutor, por instinto, pensa nele mesmo”, explica Leonardo.
E Petrus de Andrade Lima concorda. Para ele, as empresas que vendem a moto como sinônimo de liberdade e agilidade precisam assumir responsabilidade. “A sociedade brasileira não vai suportar esse crescimento tão grande de ocorrências que envolvem motos. As empresas deveriam ser parte da solução.”
Ele propõe algo ousado. “Assim como no cigarro, deveríamos mostrar o risco. Dizer: ‘Andar de moto no Recife tem tantos por cento a mais de chance de sinistros do que andar de coletivo’. Isso faria a pessoa pensar antes de comprar uma moto ou chamar pelo aplicativo.”
É um tipo de alerta que ainda não existe. E, enquanto não vem, a engrenagem gira, empurrada pela falta de transporte público e pelo custo da gasolina. “As causas são múltiplas: transporte precário, estradas ruins, gasolina cara. A moto infelizmente virou a única opção para muita gente”, resume Petrus.
A embriaguez do perigo
Nos prontos-socorros e nas planilhas, outro padrão se repete: o álcool. A pesquisa da SBOT mostra que até metade das vítimas havia consumido bebida antes da ocorrência no trânsito com envolvimento de motocicleta.
Petrus confirma o padrão e aponta o domingo como o dia mais crítico. “Mais de 20% das notificações ocorrem no domingo, o dia do descanso, associado à bebida.” E alerta: “A motocicleta, por ser de duas rodas, exige mais equilíbrio e atenção. Se o álcool já é ruim para qualquer tipo de pilotagem, para quem está na moto é desastroso.”
Entre os fatores de risco, há também os detalhes quase banais, mas fatais. “A legislação proíbe calçados que não se fixam aos pés, mas não obriga sapato fechado. Quando o pé entra na corrente, a pessoa sofre amputação.” O médico chama isso de “problema multicausal”: uma mistura de falhas de infraestrutura, descuido e legislação frouxa.
“É um paradoxo poder comprar uma moto sem ter habilitação; adquirir algo que pode matar. Isso não faz sentido.”
O custo invisível
O que começa como uma queda no asfalto termina num rombo no orçamento público. “Tudo isso traz um impacto enorme tanto na Previdência Social, com pessoas jovens afastadas, quanto no SUS, que absorve os custos de internações prolongadas e procedimentos complexos.”, explica Leonardo Gomes.
No Hospital da Restauração, cada vaga ocupada por uma pessoa vítima da moto é uma vaga a menos para um paciente com câncer, uma criança com distúrbio neurológico, um idoso com acidente vascular cerebral (AVC). “Estamos retirando recursos de áreas cruciais. A saúde está no limite”, sublinha Petrus.
E, no fundo, a pergunta que devemos fazer não é apenas médica; é social. Quanto custa a imprudência coletiva de um país que escolheu as motos como solução para o transporte e acabou colhendo tragédias?
O país sobre duas rodas
O Brasil, segundo o levantamento da SBOT, é hoje o país com um dos maiores índices de sinistros motociclísticos do mundo. A campanha da entidade "Na moto, não mate, não morra", já citada anteriormente, também tenta despertar uma consciência que o trânsito insiste em ignorar.
“Hospitais lotados, profissionais sobrecarregados e recursos escassos. Além da dor das vítimas e famílias, há um efeito cascata que compromete todo o sistema de saúde”, resume o presidente da SBOT, Paulo Lobo, no documento que embasa a campanha.
A pesquisa mostra o que os números escondem: cada curva, cada queda e cada sirene trazem não só dor, mas também um ciclo de exclusão. As sequelas físicas viram desemprego; o desemprego vira vulnerabilidade; e a vulnerabilidade empurra outros jovens para o mesmo destino: o asfalto.
O colapso anunciado
"O esforço que estamos fazendo para conter essa onda é crucial, mas pode ter chegado tarde demais", lamenta Petrus. Há 20 anos, ele trabalha com urgência e emergência. Sabe que o problema não cabe mais no hospital. "O volume tem cobrado um percentual muito grande do custo da saúde. E o dinheiro não é infinito. A gente vai terminar tendo dificuldade de manter o sistema."
Crise que colapsa o SUS e empobrece famílias
O aumento "muito, muito grande e rápido" de sinistros de trânsito que envolvem motocicletas no Brasil realmente mobiliza a Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. O ortopedista Luciano Temporal, presidente da entidade médica em Pernambuco (SBOT-PE), detalhou, em entrevista à reportagem deste JC, o impacto devastador dessa escalada, tanto para o sistema de saúde pública quanto para a estrutura social do Brasil.
A principal preocupação da sociedade médica é o efeito que o volume de vítimas de moto provoca no SUS. O aumento da demanda e a ocupação maciça de leitos de trauma dificultam o acesso ao tratamento de outros pacientes. Quem precisa de cirurgias ortopédicas eletivas, por exemplo, enfrenta dificuldades.
“Digamos que a pessoa joga vôlei, futebol, qualquer esporte, e sofre uma ruptura do menisco ou do ligamento do joelho. Precisa fazer uma cirurgia, mas o hospital de referência do SUS não consegue disponibilizar horário e sala porque tudo está ocupado pelas fraturas das pessoas que caíram de moto”, frisa Luciano.
A gravidade do problema é alarmante: em enfermarias de trauma, até nove em cada dez leitos podem estar ocupados por vítimas de sinistros de moto. Programas pontuais, como o Cuida PE (estratégia do governo de Pernambuco com o objetivo de reduzir as filas e o tempo de espera por cirurgias eletivas) ajudam a desafogar a demanda, mas Luciano Temporal compara esses esforços a “secar gelo”: a necessidade é contínua e a solução não é permanente.
As vítimas chegam com traumas de alta energia (aqueles caracterizados por lesões complexas, potencialmente fatais). Além das fraturas de fêmur, pernas, braços, ombros e punhos, muitos casos resultam em perdas funcionais ou mutilações. Há ainda o trauma psicológico e a necessidade de reabilitação, o que torna o impacto muito além do tratamento ortopédico imediato.
Economia de aplicativos e custo social
De acordo com Luciano Temporal, há aumento de sinistros de trânsito não apenas com motos, mas também com bicicletas, impulsionados pelo uso crescente desses veículos para serviços de delivery e mobilidade por aplicativos.
Segundo o médico, muitos motociclistas escolhem essa forma de trabalho pela liberdade de horário e pelo potencial de ganhos maiores. No entanto, a pressão por velocidade e entrega rápida, incentivada pelos sistemas de pontuação dos aplicativos, aumenta consideravelmente o risco de ocorrências no trânsito.
“Quando um sinistro ocorre, o custo para o sistema público e para a Previdência Social é altíssimo. Além disso, a consequência social é devastadora. A família empobrece, ele precisa de reabilitação, e pessoas próximas muitas vezes precisam parar de trabalhar para ajudá-lo.”
Frequentemente, o motociclista envolvido no sinistro é o provedor da casa. Se ficar permanentemente limitado ou incapacitado, toda a família sofre um impacto econômico profundo.
Desrespeito às leis e falta de habilitação
O desrespeito às leis de trânsito é constante. O ortopedista Luciano Temporal relata motos que circulam na contramão, sobre calçadas e em locais inadequados. Muitos motociclistas parecem acreditar que os motoristas devem apenas olhar para os retrovisores, sem prestar atenção à frente.
Outro problema grave é que muitas pessoas pilotam sem habilitação. O alto custo da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de moto, cerca de R$ 3.000, desencoraja a regularização. Isso significa que muitos pilotos nunca passaram pelo aprendizado correto das leis de trânsito.
A solução passa por políticas públicas e regulação
Nesse contexto, Luciano Temporal é enfático: conscientização por si só não resolve. É essencial uma política pública robusta para conter o problema. As soluções propostas pelo ortopedista incluem:
- Melhoria do transporte público: Incentivar o uso de transporte coletivo, reduzindo a dependência das motos.
- Regulamentação e fiscalização de aplicativos: Responsabilizar plataformas, incluindo penalidades para pilotos que infrinjam a lei.
- Alertas de risco nos aplicativos: Informar explicitamente os perigos, como ocorre com advertências em produtos de tabaco.
- Campanhas educativas: Criar campanhas sobre os riscos de sinistros de trânsito que envolvem moto, semelhantes às existentes para ocorrências com carro em rodovias.
Luciano Temporal enfatiza que o trabalho da sociedade médica que ele representa é alertar e mobilizar as autoridades e a sociedade em geral para a dimensão do problema, que consome recursos públicos em um verdadeiro “genocídio das motos”, como ele bem define.