A obesidade está vencendo: ela alimenta a epidemia de câncer, e o Brasil ainda fecha os olhos

Em meio a aumento de tumores ligados a excesso de peso, médico do HC-UFPE alerta que o País ignora a obesidade e deixa o câncer avançar

Por Cinthya Leite Publicado em 24/10/2025 às 14:27 | Atualizado em 25/10/2025 às 11:07

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FOZ DO IGUAÇU* - A obesidade não é apenas uma questão estética ou metabólica. Ela se tornou um potente motor da epidemia de câncer no mundo. Estamos falando de um problema de saúde pública ainda tratado com descuido pelas autoridades e subestimado em suas consequências. 

Esse é um dos pontos de destaque da programação do 25º Congresso Brasileiro de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, que termina nesta sexta-feira (24), em Foz do Iguaçu, no Paraná. No evento, o debate ganha força na voz do cirurgião Álvaro Ferraz, chefe do Serviço Cirurgia Geral do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Ao longo de duas aulas ministradas sobre o tema, Álvaro enfatizou o quanto a relação entre obesidade e câncer é "muito forte" e extremamente preocupante, já que a incidência de tumores ligados ao excesso de peso disparou nas últimas duas décadas.

Os números são alarmantes: há 20 anos, a incidência de câncer associada à obesidade era de 3,7 por 100 mil habitantes. Hoje, esse número saltou para 13,52 por 100 mil. Atualmente, 13 tipos de câncer têm forte correlação com a obesidade. Entre eles, mama, endométrio e ovário.

Mecanismos do risco: insulina, estradiol e inflamação

O excesso de gordura corporal desencadeia uma série de alterações metabólicas que favorecem o desenvolvimento de tumores. Segundo Álvaro, no cenário da obesidade, a resistência à insulina, o aumento do estradiol (principal hormônio sexual feminino) e a inflamação crônica do tecido adiposo são os principais fatores que predispõem ao câncer.

Nas mulheres, o risco é particularmente elevado. Entre os tumores mais associados à resistência à insulina e ao desequilíbrio hormonal, destacam-se os cânceres de mama, endométrio e ovário.
Já entre os cânceres gastrointestinais, os de esôfago e fígado vêm crescendo de forma preocupante.

O fígado, aliás, merece atenção especial. O acúmulo de gordura hepática (esteatose) é hoje a principal causa de transplantes e tem impulsionado a escalada do câncer hepático.

Diante desse panorama, Álvaro traz explicações. "A gordura no fígado é a principal causa de transplante de fígado. E gordura do fígado estourou a incidência de câncer de fígado também, porque o paciente evolui para esteatopatite, cirrose."

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Segundo Álvaro, a resistência à insulina, o aumento do estradiol (principal hormônio sexual feminino) e a inflamação crônica do tecido adiposo são os principais fatores que predispõem ao câncer - CINTHYA LEITE/JC

A perda de peso é fundamental; e manter é o verdadeiro desafio

A boa notícia é que o risco de câncer cai drasticamente com o emagrecimento. Ao perder peso, o paciente corrige alterações metabólicas ligadas à resistência à insulina e à inflamação. Com isso, o risco de câncer pode se normalizar, igualando-se ao de pessoas que nunca viveram com obesidade, segundo Álvaro.

A perda de peso pode ser alcançada tanto por medicamentos quanto por cirurgia. Esta última tem a vantagem por proporcionar resultados mais duradouros. 

Contudo, a batalha só é vencida se o peso for mantido. "É essencial uma perda de peso mantida por, pelo menos, cinco anos para uma redução sustentável dos riscos", enfatiza Álvaro. 

O perigo do 'vai e volta'

Um dos maiores desafios atuais é o efeito sanfona, o 'emagrece e engorda'. Muitos pacientes que usam medicamentos modernos injetáveis, como tirzepatida e semaglutida, não conseguem manter o tratamento a longo prazo.

"Dados mostram que, após um ano de uso de tirzepatida, por exemplo, 50% dos pacientes com diabetes e 60% dos sem diabetes interromperam o tratamento. O resultado é previsível: em um ano, metade das pessoas com diabetes e um terço das quem não têm diabetes voltaram a ganhar peso", frisa Álvaro.

Esse ciclo é perigoso porque anula a proteção conquistada. "Na hora que a pessoa engorda, volta a produzir insulina e volta a ter inflamação. Então, não dá tempo de o organismo manter aqueles fatores que o protegem."

Mesmo após normalizar o peso, o paciente deve manter outros cuidados, como não fumar e evitar bebida alcoólica. Além disso, vale monitorar predisposições genéticas, pois esses fatores também influenciam o risco de câncer.

Alguns tumores, como o de mama, podem levar de 10 a 15 anos para se desenvolver, o que torna essencial a reversão precoce dos fatores de risco.

Obesidade: uma doença negligenciada

Apesar do impacto devastador, a obesidade segue negligenciada no mundo inteiro. "Se considerarmos todos os pacientes com obesidade no mundo, só 9% deles têm algum tipo de tratamento. Eu não estou falando de cirurgia; estou falando de tratamento: seja regime, medicação ou cirurgia. Só 9% das pessoas com obesidade são tratadas." 

Segundo ele, a obesidade "continua sendo negligenciada em tudo: no diagnóstico e, principalmente, no tratamento". A situação é ainda mais crítica a nível nacional: "No Brasil, não tem uma droga no Sistema Único de Saúde (SUS) autorizada, liberada para se fazer. É um absurdo." 

Mesmo com o avanço de tecnologias como as injeções para perda de peso (as populares 'canetinhas'), Álvaro mantém uma visão pessimista. "Infelizmente, nada que tem sido feito tem sido capaz de diminuir o aumento da obesidade e, consequentemente, do câncer." 

Ele conclui com um alerta contundente: a luta contra a obesidade é uma batalha que, por enquanto, "a gente não está vencendo". 

Hora de agir: um chamado às autoridades

O alerta de especialistas como Álvaro Ferraz expõe uma urgência que ultrapassa o campo médico. O avanço silencioso da obesidade (e de seus desdobramentos, como o câncer) é uma questão de saúde pública de primeira ordem.

Não se trata apenas de conscientizar indivíduos, mas de mobilizar políticas efetivas, ampliar o acesso ao tratamento e investir em prevenção estruturada.

É inadmissível que, em pleno século 21, o Brasil ainda careça de medicamentos ofertados pelo SUS para tratar uma doença que afeta milhões e impulsiona outras de curso letal.

Enquanto o poder público permanece inerte, a obesidade continua a ceifar vidas e a pressionar o sistema de saúde.

O combate à obesidade precisa sair do discurso e entrar na agenda de Estado, com investimento, planejamento e compromisso intersetorial.

Sem isso, a epidemia de obesidade continuará a alimentar outra, também temida: a do câncer.

*A jornalista acompanhou a programação do congresso a convite da SBCBM.

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