Diagnóstico precoce da AME depende do teste do pezinho ampliado, com acesso ainda limitado no Brasil

Especialistas destacam desafios da triagem ampliada para diagnóstico da atrofia muscular espinhal e reforçam evidências para adoação imediata no País

Por Cinthya Leite Publicado em 05/08/2025 às 16:51

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O Brasil ainda enfrenta desafios significativos para assegurar que o teste do pezinho ampliado seja uma realidade para todos os recém-nascidos, de maneira equitativa e eficaz. A Lei nº 14.154/2021, sancionada em 2021, autorizou a ampliação do número de doenças rastreadas de seis para mais de 50, incluindo condições graves como a atrofia muscular espinhal, conhecida pela sigla AME.

A AME é uma doença neuromuscular genética rara, degenerativa e progressiva, causada pela ausência ou deficiência de um gene chamado sobrevivência do neurônio motor 1 (SMN1), que leva à perda irreversível de neurônios motores e, assim, afeta as funções musculares.

A maioria dos casos de AME (entre 50% e 60%) é do tipo 1, a mais grave, com sintomas que aparecem nos primeiros 6 meses de vida. Sem tratamento, crianças com AME tipo 1 perdem rapidamente os neurônios motores responsáveis pelas funções musculares, o que leva à dificuldade para respirar, engolir, falar, sentar-se ou andar sem apoio.

Os casos podem, inclusive, necessitar de ventilação permanente e vir a óbito prematuramente, por volta de 2 anos de idade.

A AME, que afeta cerca de 1 a cada 10 mil nascidos vivos, poderia ser diagnosticada precocemente em aproximadamente 250 bebês por ano com a implementação da triagem ampliada no Brasil.

Apesar disso, a implementação nacional da triagem neonatal ampliada tem esbarrado em obstáculos de ordem operacional e orçamentária, o que compromete o acesso integral e igualitário ao diagnóstico precoce que a legislação propõe garantir.

Segundo o neurologista canadense Hugh McMillan, médico com reconhecimento internacional em doenças neuromusculares e na formulação de políticas de triagem neonatal, o Brasil possui um marco legal robusto e promissor, mas precisa transformar essa política em prática concreta.

"A experiência do Canadá, país que também enfrenta desafios logísticos e desigualdades em suas províncias, mostra que a legislação é apenas o primeiro passo. O verdadeiro desafio está em implementar o programa de forma integrada, com investimento em infraestrutura, planejamento logístico e atenção às realidades locais", diz Hugh McMillan. 

"No Canadá, a implementação da triagem neonatal para AME tem se mostrado não apenas clinicamente eficaz, mas também uma medida comprovada de relação custo-benefício, especialmente quando o tratamento é iniciado em fase pré-sintomática."

O neurologista frisa que a intervenção precoce permite que muitas crianças atinjam marcos motores compatíveis com o desenvolvimento típico, o que reduzi a necessidade de hospitalizações recorrentes, procedimentos cirúrgicos complexos e suporte ventilatório ou ortopédico contínuo.

"Esses desfechos contribuem diretamente para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes e suas famílias, além de aliviar a pressão sobre os recursos do sistema de saúde."

Modelagens econômicas realizadas indicam que o tratamento da AME em fase pré-sintomática é custo-efetivo em comparação ao tratamento em estágios avançados da doença. Outro artigo mostrou que a triagem precoce pode gerar economia de até US$ 4 para cada US$ 1 investido.

"A triagem neonatal não é um ato isolado, mas parte de uma política de cuidado. Se executado como previsto, o programa brasileiro pode se tornar referência mundial, superando em abrangência e impacto países como Canadá, Reino Unido e Japão", opina Hugh McMillan.

No Brasil, o neurologista Edmar Zanoteli, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em doenças neuromusculares, ressalta que "o País já possui os instrumentos normativos e científicos necessários para avançar, mas é preciso garantir a implementação efetiva do teste do pezinho ampliado em todas as regiões". 

Para Zanotelli, não basta testar; é preciso tratar precocemente, orientar as famílias e garantir que todo o percurso assistencial esteja estruturado, desde o diagnóstico confirmatório até o acesso ao tratamento e o acompanhamento.

"O envolvimento de profissionais da saúde, gestores públicos e familiares é fundamental para consolidar um modelo de cuidado integral. Só assim conseguimos, de fato, mudar o curso da doença e oferecer um futuro com qualidade de vida para essas crianças", destaca o professor da USP.

Atualmente, 33 países já adotaram a triagem neonatal para AME, total ou parcialmente, e isso comprova o custo-benefício da ampliação e o impacto em saúde pública.

"A ampliação efetiva da triagem neonatal no Brasil representa um passo decisivo para salvar vidas, reduzir desigualdades e garantir um futuro mais saudável para milhares de crianças”, conclui Hugh McMillan.

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