IGREJA CATÓLICA | Análise

Uma bênção para o mundo: a voz e os gestos do papa Francisco clamaram por uma saúde pública para todos

Durante todo o seu pontificado, o papa Francisco tratou das questões sanitárias com um olhar pastoral, social e profundamente humano

Por Cinthya Leite Publicado em 21/04/2025 às 14:06 | Atualizado em 21/04/2025 às 18:46

O papa Francisco, que morreu nesta segunda-feira (21), aos 88 anos, e foi o primeiro latino-americano a assumir o papado, sempre entendeu a saúde como um direito humano fundamental, inseparável da dignidade e da justiça social.

A Saúde sob a perspectiva do papa Francisco: fé, justiça e cuidado integral

O pontífice sempre nos convidou a enxergar a saúde muito além do binômio saúde-doença, mas como uma dimensão essencial da dignidade humana. A voz do papa, em vários momentos, ressoou como um chamado à compaixão com coragem e à fé que se traduz em cuidado.

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Em seu pontificado, Francisco tratou de questões sanitárias com um olhar pastoral, social e profundamente humano. A voz dele esteve presente tanto em grandes emergências globais quanto nas realidades silenciosas dos mais esquecidos.

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Papa Francisco, em março de 2020, durante benção "Urbi et Orbi" - Vatican Media

A voz do papa na pandemia de covid-19: a oração na praça vazia

Em tempos de crises sanitárias, desigualdades e dilemas éticos, ele assumiu uma voz clara, compassiva e provocadora. 

Isso nos faz lembrar o auge da pandemia de covid-19, em 27 de março de 2020. Sob a chuva, na Praça de São Pedro, em Roma, caminhava um homem só. De passos lentos, cabeça baixa, carregando em si a angústia de milhões. Era o papa Francisco, um dos mais queridos da história.

Hoje, dia 21 de abril de 2025, após o anúncio da morte do pontífice, essa cena da pandemia é uma das lembranças mais compartilhadas nas redes sociais.

Naquele 27 de março, o mundo inteiro parou para assistir a essa que seria uma das imagens mais emblemáticas da crise sanitária: o papa, solitário, rezou pela humanidade na imensa e vazia praça. Ele pedia a Deus que olhasse por nós. "Densas trevas cobriram as nossas estradas, invadiram tudo e silenciaram a música das nossas praças", disse naquela ocasião. 

Era mais do que um ato litúrgico. Era um gesto profundamente humano e espiritual. O papa se solidarizou com os que perderam entes queridos, agradeceu aos profissionais de saúde, clamou por compaixão global e, acima de tudo, ofereceu consolo: "Ninguém se salva sozinho". 

Em tempos em que muitos líderes se calaram ou se confrontaram, o papa falou e confortou. Em tempos de isolamento, ele se fez presença - e esteve com todos. 

O papa, então, naquela data, concedeu a benção de "Urbi et Orbi" (à cidade e ao mundo, na tradução) a todos os mais de 1,3 bilhão de católicos do mundo. Concedida geralmente apenas no Natal e no domingo de Páscoa, a bênção oferece aos fieis a chamada "indulgência plenária", que concede perdão aos pecados.

Conforme noticiou o Vaticano na ocasião, foi um "evento extraordinário" e "em um momento específico, quando o mundo cai de joelhos pela pandemia". 

Ainda durante a crise sanitária, o pontífice defendeu o acesso igualitário às vacinas e tratamentos. Criticou duramente o nacionalismo vacinal e o domínio da lógica do lucro no setor farmacêutico. Além disso, o papa Francisco destacou que a saúde pública é um bem coletivo e depende da solidariedade internacional.

Emergências esquecidas: mpox e doenças negligenciadas

Mas a preocupação do papa com a saúde não se limitou à pandemia. Quando a mpox foi declarada emergência sanitária em 2024, ele expressou solidariedade às vítimas, especialmente nos países mais pobres da África, como a República Democrática do Congo. Assim, pediu aos governos e à iniciativa privada que compartilhassem tecnologias e tratamentos, para que ninguém fosse deixado para trás.

Microcefalia e zika: ética, ciência e acolhimento em tempos de crise

A abordagem ética do papa Francisco ficou ainda mais evidente durante a epidemia do vírus zika, associada ao aumento de casos de microcefalia, em 2015 e 2016. Em um momento de grande tensão, Francisco afirmou que, diante de riscos sérios, o uso de contraceptivos poderia ser considerado moralmente aceitável — um "mal menor".

Foi uma fala rara, mas que demonstrou a sensibilidade pastoral diante de realidades complexas. Ainda assim, manteve a posição da Igreja contra o aborto, ao reafirmar a gravidade moral e a convicção de que "não se elimina um problema contratando um assassino".

Fome e desnutrição: uma "injustiça escandalosa"

Outros temas centrais, nas falas do papa, foram a fome e a desnutrição, sobretudo entre as crianças. Francisco denunciou a aceitação da fome como uma "injustiça escandalosa" e defendeu que acabar com ela deve ser um objetivo irrenunciável da política internacional.

Em encontros com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e nas mensagens aos líderes do G20, o pontífice reiterou que garantir o acesso a alimentos é um imperativo moral. Também denunciou o desperdício de comida e a especulação no mercado de alimentos como crimes contra os pobres.

Um papa contra a "cultura do descarte"

O cuidado com os idosos também teve destaque durante o pontificado. Francisco alertou para uma "eutanásia social" silenciosa que se manifesta na negligência, no abandono e na omissão no acesso a medicamentos e cuidados.

Para o Papa Francisco, cuidar dos idosos não era apenas uma questão de afeto, mas uma exigência ética e social. Desde os primeiros anos de seu pontificado, ele denunciou com veemência o que chamou de "cultura do descarte" — um modelo de sociedade que, em nome da produtividade e do individualismo, abandona quem já não pode produzir ou consumir.

Francisco via os idosos como "a memória viva dos povos" e dizia que uma sociedade que não cuida dos seus anciãos está fadada a esquecer de si mesma. 

Prevenção como atitude cristã

Ele pediu às instituições cristãs que se arrisquem mais no tratamento integral dos doentes e de suas famílias, ao oferecer não apenas remédios, mas presença, dignidade e compaixão.

Na visão do papa Francisco, a prevenção despontava como um dos pilares do cuidado verdadeiro. "Não basta apenas curar; é preciso preservar a saúde", dizia. E é nessa lógica que a saúde deve ser pensada: com políticas públicas eficazes, ações educativas e atenção permanente aos mais vulneráveis.

Os caminhos do papa Francisco nos mostram que ele nunca separou saúde de justiça. Teve um olhar sempre atento aos que vivem nas margens: migrantes, pobres, pessoas com deficiência, populações negligenciadas pelos sistemas de saúde.

Em milhares de ocasiões, o papa nos convidou a enxergar a saúde como reflexo da sociedade que construímos. Ou seja, entre as lições disseminadas por Francisco, fica também a mensagem de que a sociedade justa é aquela onde todos têm direito à vida digna — e isso começa pelo cuidado.

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