Reforma tributária: ITBI por valor estimado desafia STJ e pode gerar disputa judicial
Proposta discutida no Senado rompe com jurisprudência consolidada, inverte o ônus da prova e compromete a segurança jurídica", diz especialista

Durante audiência pública no Senado sobre o PLP 108/2024, que regulamenta pontos da reforma tributária, especialistas alertaram para os riscos de uma mudança polêmica: permitir que prefeituras cobrem o ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) com base em valor estimado do imóvel — definido pela própria administração municipal —, em vez do valor declarado pelo contribuinte.
Para o tributarista Eduardo Natal, sócio do escritório Natal & Manssur Advogados, mestre em Direito Tributário pela PUC/SP e presidente do Comitê de Transação Tributária da Associação Brasileira da Advocacia Tributária (ABAT), a proposta representa uma inversão preocupante da lógica tributária atual.
“O PLP nº 108/2024 não apenas se afasta da diretriz já firmada pelo STJ (Tema 1.113), que vincula a base de cálculo ao valor real declarado, mas tenta usar o Legislativo para legitimar uma inversão: presume que o contribuinte subavalia o imóvel e transfere a ele o ônus de provar, via laudos, que a estimativa municipal está errada”, afirma Natal.
Na avaliação do especialista, a medida rompe com princípios constitucionais como o devido processo legal e a capacidade contributiva. “A carga de prova não pode ser simplesmente jogada ao contribuinte sem abrir-lhe um processo regular, especialmente porque isso pode levar à tributação sobre valores inexistentes ou fictícios.”
OUTROS TRIBUTOS
A experiência com outros tributos já demonstra os efeitos da adoção de valores arbitrados pela administração pública, aponta Natal. “Tributos baseados em valores arbitrados unilateralmente pelo Fisco geram altos níveis de litígio, como já ocorre em matéria de ISS, IPTU e ICMS-ST. A decisão do STJ no Tema 1.113 buscou justamente reduzir esse potencial, ao afastar o uso de valores de referência.”
Além disso, ele lembra que a discussão no STF sobre o ITBI — especialmente no que diz respeito à cessão de direitos — ainda está em aberto. “A anulação da tese do Tema 1.124 e a ausência de uma decisão definitiva sobre a incidência do ITBI nas cessões de direitos ou no momento da escritura criam um vácuo jurídico que pode ser explorado pelos municípios, mas que inevitavelmente resultará em judicialização.”
COBRANÇA ANTECIPADA
Outro ponto de preocupação levantado por Natal é a possibilidade de cobrança antecipada do ITBI, no momento da escritura, com a promessa de desconto, mesmo sem o registro do imóvel — etapa considerada essencial pelo STJ para caracterizar a transmissão da propriedade.
“De acordo com a orientação jurisprudencial que vem sendo aplicada, o imposto só seria devido com a efetiva transmissão da propriedade, formalizada pelo registro do imóvel. A antecipação do pagamento (sob promessa de desconto) pode gerar contencioso, por afrontar o princípio da legalidade estrita e gerar cobranças em momento ainda não consolidado como fato gerador.”
Na prática, afirma o tributarista, o projeto tenta legitimar uma presunção de má-fé do contribuinte e abrir caminho para arrecadação sobre valores fictícios, o que contraria não só a jurisprudência vigente, mas também fundamentos constitucionais. “Embora o STF ainda não tenha decidido a fundo sobre os parâmetros exatos da base de cálculo, essa inversão do ônus probatório levanta sérias dúvidas de compatibilidade com os princípios constitucionais da legalidade, do devido processo legal e da ampla defesa.”