Acesso e permanência na educação ainda são barreiras para pessoas com autismo, apesar dos avanços legais

No ensino superior, apenas 0,8% dos estudantes são autistas, refletindo dificuldades de permanência devido a barreiras de acesso, adaptação e suporte

Por Mirella Araújo Publicado em 03/12/2025 às 12:53 | Atualizado em 03/12/2025 às 13:32

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Celebrado nesta quarta-feira (3), o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência chama atenção para a necessidade de políticas públicas inclusivas efetivas e para o enfrentamento das barreiras que ainda dificultam o acesso de milhões de brasileiros a direitos básicos, especialmente à educação.

Segundo os dados do “Censo Demográfico 2022: Pessoas com Deficiência e Pessoas Diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista – Resultados Preliminares da Amostra”, divulgados pelo IBGE em maio deste ano, o Brasil possui 14,4 milhões de pessoas com deficiência, o que corresponde a 7,3% da população com dois anos ou mais.

O levantamento também identificou, pela primeira vez em um censo, 2,4 milhões de pessoas com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) — grupo reconhecido legalmente como pessoa com deficiência pela Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), tendo sido incluído pelo Ministério da Saúde, em 2023, na Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência

Apesar dos avanços na legislação e de iniciativas de inclusão escolar, os números mostram que a educação ainda é um dos maiores desafios para essa parcela da população. A maioria dos estudantes com autismo está no ensino fundamental regular: 508 mil matrículas (66,8%). Mas, no ensino médio, são 93,6 mil (12,3%), o que evidencia uma queda significativa ao longo da trajetória escolar.

Entre os cursos, a alfabetização de jovens e adultos apresentou o maior percentual de estudantes com TEA: 4,7%, chegando a 9,1% entre jovens de 15 a 17 anos e 10,6% entre 18 e 24 anos. Nas creches, 3,8% das crianças tinham diagnóstico.

No ensino superior, o índice é de apenas 0,8%, indicando os desafios de permanência e progressão desse público devido a barreiras de acesso, adaptação pedagógica e suporte institucional.

Inclusão que transforma trajetórias

A contadora Cristiane Guaraná conta que, por muito tempo, foi a única a acreditar que o filho chegaria ao ensino superior. Matheus Guaraná, hoje com 22 anos, recebeu o diagnóstico de TEA, nível de suporte 1, aos três anos, depois que parou de falar. A comunicação começou a evoluir melhor por volta dos seis anos.

“Faz 12 anos que parei de trabalhar para me dedicar a ele. Até os dois anos, Matheus falava poucas palavras, apresentava gestos repetitivos e dificuldade de socialização. Corri atrás de exames, terapias, estímulos, e sempre estive presente na escola, conversando com as professoras”, relatou Cristiane à coluna Enem e Educação.

Quando chegou o momento de ingressar no ensino superior, Cristiane disse que foi a maior incentivadora para que o seu filho pudesse tentar uma vaga. "Se você não passar no Sisu, nós podemos tentar o Prouni, eu me viro em 100, mas você vai estudar e vai conseguir", descreveu emocionada. 

No fim deste ano, Matheus concluirá o curso de Análise e Desenvolvimento de Sistemas (ADS) do Centro Universitário Tiradentes (Unit-PE). Ele passou em primeiro lugar no Enem/Prouni, com bolsa 100%. Atualmente, é analista júnior da Accenture, por meio de uma parceria com o Porto Digital.

Na universidade, Cristiane continuou atuante para garantir não apenas o acesso de Matheus, mas também a permanência com condições adequadas. Ela buscou os recursos previstos na legislação para estudantes com deficiência — incluindo pessoas autistas — como tempo adicional nas avaliações, ambiente mais tranquilo para provas, apoio de tutores e uso de tecnologia assistiva, medidas que asseguram igualdade de oportunidades no processo de aprendizagem.

O jovem contou que começou a ter mais dificuldades na aprendizagem a partir do ensino médio, mas que sempre pode contar com o apoio da mãe e que isso fez uma grande diferença. "Quem mais buscava ajuda com a coordenação, os professores e quem mais me incentivava a estudar mesmo que eu esteja sem vontade era a minha mãe. Foi graças a ela, as psicólogas, os professores que me ajudaram a chegar até aqui", afirmou Matheus Guaraná a coluna Enem e Educação.

O estudante também disse que antes de escolher a área de TI, ele queria cursar Astronomia ou Biomedicina. "O primeiro foi porque eu era apaixonado por essa área desde criança, tanto é que meu sonho de infância era ser um astronauta, já o segundo era mais um sonho meu, que era descobrir a cura da diabetes, pra poder curar o meu pai e outros diabéticos", disse. 

 

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Matheus Guaraná concluirá o curso de Análise e Desenvolvimento de Sistemas (ADS) do Centro Universitário Tiradentes (Unit-PE) e já ingressou no mercado de trabalho - Cortesia

Quando o acesso vira permanência

Para Mário Gouveia, coordenador de Pesquisa e Extensão da Unit-PE e do curso de Especialização em Educação Inclusiva e Metodologias Ativas do centro universitário, as principais dificuldades enfrentadas por estudantes diagnosticados com TEA estão relacionadas aos desafios em atividades em grupo e ao desenvolvimento de competências socioemocionais.

Nesses casos, o diálogo entre professores e coordenação é fundamental para que estratégias individualizadas sejam definidas e o aluno não se desestimule a continuar o curso. No caso de Matheus, ele está envolvido em estágios e atividades ligadas ao seu curso, participando de desafios reais do mercado de trabalho.

Outro ponto, segundo ele, é que muitos docentes foram formados antes de discussões mais amplas sobre autismo e transtornos de aprendizagem, o que reforça a necessidade de capacitação contínua. Além disso, nem todos os estudantes chegam com diagnóstico formal, o que pode dificultar o trabalho pedagógico.

Entretanto, quando há estrutura adequada para acolher alunos neurodivergentes, o processo de inclusão se torna mais eficiente ao longo da trajetória acadêmica.

“A gente não pensa que a inclusão do estudante neuroatípico vai acontecer sem a participação dele. Existe um lema trazido pelas pessoas com deficiência que diz: ‘nada para nós, sem nós’. Então, de fato, não dá para pensar em inclusão sem colocar o estudante como protagonista das ações. Não é apenas incluir por incluir, mas garantir dignidade e reforçar os canais de aprendizagem”, afirmou o coordenador à coluna Enem e Educação.

A Unit-PE atende 20 alunos com neurodivergência em diversos cursos, que são acompanhados pelo Núcleo de Acompanhamento psicossocial. Além disso, a instituição oferece uma formação continuada para os professores. "Nós precisamos perceber como cada um de nossos alunos aprendem e, a partir desse entendimento, construir esse conhecimento em conjunto com ele", disse. 

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Mário Gouveia é coordenador de Pesquisa e Extensão da Unit-PE, coordenador do curso de Especialização em Educação Inclusiva e Metodologias Ativas da Unit-PE - Cortesia

 

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