Grêmios estudantis perdem espaço em Pernambuco e refletem crise da participação juvenil nas escolas
Apenas 9% das escolas, entre estaduais e municipais, mantêm grêmios ativos, em meio à falta de autonomia, incentivo e avanço da participação tutelada
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Criados para fortalecer a cidadania e o protagonismo dos estudantes, os grêmios estudantis, que deveriam ser o principal espaço de formação política dentro das escolas, estão cada vez mais ausentes ou fragilizados.
Em Pernambuco, apenas 9% das escolas públicas possuem grêmio ativo, índice abaixo da média nacional, que é de 14%, segundo dados do Censo Escolar 2024.
O cenário reflete o enfraquecimento de uma estrutura essencial à gestão democrática da educação. Quase quatro décadas depois da promulgação da Lei nº 7.398, de 1985, que garantiu o direito à livre organização estudantil, o que se vê é uma escola onde a democracia formal existe no papel, mas raramente na prática.
“Os grêmios têm um papel fundamental de formação política da juventude, pois esse tipo de aprendizado se dá unindo teoria e prática, é em movimento que a consciência avança. Inclusive, a falta de organização política da juventude certamente trará efeitos prejudiciais para a futura organização sindical.”, analisa a professora do Departamento de Serviço Social da UFPE, Soraia de Carvalho, que há anos pesquisa os movimentos estudantis e o enfraquecimento da cultura política nas escolas públicas.
O que diz a Secretaria de Educação do Estado
A Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE) informa que 374 escolas estaduais possuem grêmios estudantis ativos e que há uma meta de crescimento de 10% até 2026, o que elevaria o total para cerca de 412 unidades.
O dado integra o Programa de Fortalecimento dos Órgãos Colegiados, que reúne ações voltadas tanto aos conselhos escolares quanto aos grêmios estudantis.
De acordo com a pasta, o trabalho é realizado em parceria com as 16 Gerências Regionais de Educação (GREs) e inclui rodas de conversa, oficinas sobre cidadania e democracia, reuniões técnicas e a produção de cartilhas informativas sobre o papel dos grêmios.
A SEE destaca ainda que a criação dessas entidades é de livre escolha dos estudantes, conforme previsto na Lei Federal nº 7.398/1985 e no Decreto Estadual nº 48.477/2019, que recomenda às escolas assegurar espaços de representação estudantil.
“O dever das instituições educacionais é apoiar e oferecer meios que assegurem o direito dos estudantes de se organizarem, mas essa iniciativa é de livre escolha dos discentes”, reforça a Secretaria.
A SEE também reconhece que há desafios estruturais – como a falta de tempo, de recursos e de apoio técnico –, mas afirma que busca superá-los por meio de ações educativas voltadas à cidadania e à escuta ativa, com campanhas, palestras e debates sobre a importância do grêmio como espaço democrático.
Apesar das medidas, os números revelam que o avanço é tímido. Mesmo com a ampliação do programa e as metas estabelecidas, o percentual de escolas com grêmios ainda é baixo quando considerada toda a rede pública (estadual e municipal).
Enquanto o levantamento da SEE reflete apenas a rede estadual, que conta atualmente com 1.064 escolas, o número de 374 grêmios ativos corresponde a cerca de 35% das unidades sob gestão direta do Estado.
Já no conjunto da rede pública pernambucana – que inclui também as escolas municipais, responsáveis pela maior parte do ensino fundamental – o cenário é muito mais baixo. Como mencionado anteriormente na reportagem, apenas 9% das escolas públicas do Estado mantêm grêmios estudantis em funcionamento.
Em contrapartida, a SEE aponta casos de destaque, como o da Escola Estadual Tomé Francisco da Silva, em Quixaba, premiada nacionalmente em 2025 pelo projeto Estudantes em Movimento. A iniciativa, segundo o governo, demonstra o potencial da juventude pernambucana para transformar o ambiente escolar quando há incentivo e diálogo.
“A direção ajuda, mas também impõe limites”
A realidade descrita nos números aparece de forma viva no relato do estudante Jean da Silva, 17 anos, presidente do grêmio da Escola Estadual Professor Nelson Chaves, em Camaragibe.
“O grêmio existe desde abril de 2024, mas hoje funciona mais de forma simbólica, com cartazes, posts no Instagram e rodas de conversa nas aulas vagas. Eventos grandes não conseguimos fazer”, contou Jean.
Mesmo com dificuldades, ele tenta manter o diálogo com a gestão por meio do projeto ‘Fala Aluno’, criado pelo próprio grêmio.
“A direção ajuda em algumas coisas, mas em outras coloca muitos obstáculos e ficamos sem saber o que fazer. Temos liberdade para falar, mas também temos que arcar com as consequências que isso traz”, diz.
Jean resume os principais entraves à atuação: falta de recursos financeiros, desinteresse de parte dos alunos do ensino médio e resistência institucional.
“Os alunos do fundamental ajudam em tudo, mas no médio há um certo embate sobre qualquer tema tratado. Falta incentivo. O grêmio é importante para mostrar que os alunos também têm voz, mas precisamos de mais apoio e estrutura”, reforça.
“Os grêmios fantasmas”
A situação relatada por Jean não é isolada. Em muitas escolas, o grêmio existe apenas formalmente, sem reuniões, eleições regulares ou pautas definidas.
São os chamados “grêmios fantasmas”, que, segundo a pesquisadora Soraia, refletem um modelo de gestão escolar ainda centralizador.
”Temos um baixo número de grêmios em escolas, mas é ainda menor a quantidade de organizações efetivamente conectadas com os estudantes de base. Isso ocorre quando a gestão estudantil é montada de cima para baixo, servindo mais como auxiliar da direção da escola do que como expressão da categoria perante a direção e governos", explica.
Essa percepção é confirmada pelo presidente da União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (UMES), Kleyton Pimentel, que afirma receber com frequência relatos de desmobilização.
“Tem escolas que dizem que não precisam de grêmio, outras criam e, em poucos meses, o grupo deixa de existir. Há também casos em que a direção tenta controlar a atuação dos estudantes, transformando o grêmio num braço auxiliar da gestão”, denuncia.
Para ele, o problema vai além da estrutura: é também político e simbólico.
“O Estado criou um discurso de protagonismo juvenil que, na prática, serve para substituir o movimento estudantil organizado. O estudante é convidado a ser protagonista, mas dentro de limites impostos. Isso neutraliza o pensamento crítico e esvazia o sentido de luta coletiva”, afirma.
A visão da gestão: “O coletivo é um desafio para esta geração”
Gestora da EREM Aníbal Fernandes, no Recife, Analice Rocha de Araújo está há mais de quatro anos à frente da escola e reconhece que o principal desafio é sensibilizar os estudantes para além dos conflitos cotidianos.
Segundo ela, há dificuldade em despertar o interesse dos jovens pelas discussões sobre o dia a dia da escola. A distração provocada pelas redes sociais torna a convivência coletiva um desafio constante.
“Estamos numa época de grandes desafios para a Educação. As redes sociais formatam o cérebro de muitos jovens para o que é efêmero, e isso gera uma relação de individualização – a chamada geração do quarto. O coletivo é um desafio para eles”, afirma.
Analice explica que, apesar das dificuldades, há avanços. Em sua escola, os próprios alunos têm proposto soluções para problemas cotidianos e criado espaços de diálogo.
Um dos exemplos é a Brigada da Paz, iniciativa formada por gremistas e protagonistas que atuam na mediação de conflitos e no acolhimento entre colegas.
“Os estudantes criaram um núcleo de mediação e outro de escuta. Eles mesmos identificam as situações e atuam para resolver, sempre em diálogo com a gestão”, conta.
Para a gestora, a existência de representações estudantis autônomas é essencial para que a escola cumpra seu papel democrático. Ela defende que a participação deve ser construída de forma conjunta, sem hierarquia de vozes.
“A escola é para os estudantes. Gestão nenhuma ‘dá’ voz – a gestão democrática constrói junto. A liderança democrática é realizada na coletividade”, conclui.
Protagonismo tutelado: o novo modelo de controle
O conceito de “protagonismo juvenil”, amplamente incorporado às políticas educacionais nas últimas décadas, tem sido alvo de críticas de pesquisadores e lideranças estudantis.
A professora Soraia, explica que o termo, originalmente associado à autonomia e à participação, acabou sendo transformado em uma forma institucionalizada de controle.
Segundo ela, o Estado e as redes de ensino passaram a administrar a participação estudantil, substituindo a ação política pela performance da liderança.
“A política educacional respondeu às ocupações com o discurso do ‘protagonismo juvenil’, incorporado às políticas públicas nas duas últimas décadas. Mas esse protagonismo, quando tutelado, serve mais para limitar do que para ampliar a ação coletiva dos estudantes", analisa.
Soraia lembra que, após as ocupações estudantis de 2015 e 2016, quando jovens de todo o país reagiram contra a reorganização escolar em São Paulo e as contrarreformas do governo Michel Temer, houve um esforço institucional para canalizar aquela energia para formas de engajamento controladas.
“A escola continua estruturada a partir de uma lógica geracional e hierárquica, em que os adultos detêm o poder de decisão e os jovens são vistos como aprendizes em formação, não como sujeitos capazes de intervir nos rumos da instituição.”
Ela relaciona esse processo ao avanço do conservadorismo e ao fortalecimento de projetos de controle ideológico, como o ‘Escola sem Partido’.
Desigualdades e exclusão
O esvaziamento dos grêmios não é uniforme. Dados nacionais apontam que as escolas urbanas de maior nível socioeconômico têm até quatro vezes mais grêmios ativos do que as rurais, e o percentual cai para cerca de 3% em instituições com maioria de estudantes negros, indígenas ou quilombolas.
Essa diferença reflete as desigualdades estruturais do sistema educacional brasileiro. A ausência de grêmios é mais grave nas escolas das periferias, que são justamente as que mais precisam de espaços de fala.
Para Kleyton Pimentel, recuperar o sentido coletivo da ação estudantil é o principal desafio.
“Garantir a existência dos grêmios é garantir que a escola seja espaço de cidadania. O Estado precisa parar de tratar o estudante como coadjuvante e entender que ele é parte do processo de decisão.”
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