COMPORTAMENTO DIGITAL | Notícia

Educador alerta que os riscos do celular vão além das telas

Em palestra no Centro Universitário Tiradentes (Unit-PE), Daniel Becker veio ao Recife trazer dados e nortear pais, educadores e interessados no tema

Por JC Publicado em 27/05/2025 às 18:03

Os impactos negativos na vida de crianças e adolescentes quanto ao uso excessivo do celular vão além das telas. Encontram brechas na questão social, emocional e familiar que, muitas vezes, são gatilhos e abrem portas para a atuação e domínio comportamental pelo mundo do digital do algoritmo. E os reflexos não poderiam ser outros: isolamento social, danos ao corpo físico, mental, ao processo de aprendizagem, no aspecto cognitivo, na formação de discursos atravessados e ideológicos, de automutilização e outros acometimentos de violência.

Em palestra realizada na última segunda-feira (26), no auditório do Centro Universitário Tiradentes (Unit-PE), o sanitarista, pediatra e docente aposentado Daniel Becker, que dedica sua vida ao ativismo pela infância veio ao Recife trazer dados que contextualizam e explicam toda a problemática que ronda muitas famílias, sala de aula e no meio social.

O palestrante internacional também norteou principalmente pais e educadores sobre como conduzir melhor essa relação entre celular e crianças e jovens.

Confira abaixo alguns dos principais momentos da palestra, trazendo os aspectos sociais e individuais que estão interferindo na infância e juventude.

Desigualdade social

Somos um dos países mais desiguais do mundo. Mais da metade da nossa renda é concentrada em 1% das pessoas. Ela é brutal e nociva e aumentou no últimos 20, 30 anos. Esse abismo, essa diferença mina todos os pilares da sociedade. Não prejudica só aos pobres, prejudica a todos, mas obviamente aos mais pobres.

Tornamos uma sociedade com mais violência, com mais ódio e está aumentando a cada ano. Nós temos uma precarização, um empobrecimento no vínculo entre pais e filhos, progressivo também. Nós temos uma alimentação cada vez mais nociva e abandono de uma alimentação saudável.

Violência social

Esse é um país extremamente violento, onde os maus tratos na infância são cada vez maiores. Os números são inacreditáveis. São 60 e tantos mil estupros de menores de 14 anos. Grande maioria é doméstica. São fenômenos cometidos por familiares ou amigos da família, pessoas conhecidas. Não é o cara da capa preta que está na praça. É o namorado da irmã, é o padrasto. Muitas vezes uma pessoa muito próxima.

E se apenas 10% desse fenômeno são reportados, que é o que se calcula, porque é um fenômeno doméstico, significa que são mais de 600 mil estupros por ano no Brasil. Uma criança de quatro anos vai procurar quem? Ela não entende o que está acontecendo. Uma criança de 12 anos não tem coragem de reportar para ninguém.

Mais: 65% dos homicídios de crianças são cometidos também por familiares. E não só a gente faz mal, a gente trata mal quem cuida de crianças. Também é um país extremamente violento contra as mulheres. Todas as formas de violência contra mulher estão crescendo.

Uma sociedade onde uma vida de uma pessoa rica vale mais do que a vida de uma pessoa pobre? Uma sociedade onde a polícia, como na minha cidade, pode entrar numa favela ao meio-dia e sair atirando e uma criança ou duas crianças morrem de bala, entre aspas, perdida, porque não é perdida. Isso vai para a manchete do jornal uma vez, mas depois no dia seguinte é esquecido.

Além disso, a gente desumaniza a pobreza, criminaliza a pobreza. Morreu a criança porque era bandidinho. Bandido bom é bandido morto. Os grandes bandidos estão lá impunes. As crianças e os adolescentes são 40, 50 mil mortes por ano. Cerca de 70% negros. E a gente vai se afastando também de tudo que é público. Os ricos têm medo de pobreza, se afasta da saúde pública, do hospital público.

A ética no Brasil

A ética da vida no Brasil está quebrada. Quando a ética básica da vida está quebrada, como é que você pode esperar a ética na justiça, na polícia, no ministério, no serviço público, nas relações interpessoais, nas empresas? Não tem. A ética é uma só.

Políticas públicas

Nós precisamos de políticas públicas que tornem a cidade mais amigável das famílias, mais verde, com as praças, com praças que tenham atividade, com o esforço público que seja funcional, seja convite às famílias para brincadeira. Política pública funciona e precisamos apoiar políticas públicas que protejam a infância, a educação, a saúde, o ambiente, que promovam uma vida melhor, que combatam a desigualdade.

A gente sabe que para criar uma infância plena, feliz, bem desenvolvida, saudável precisa de políticas públicas que garantam uma família preparada para cuidar das crianças. De família que saiba que não pode bater, que tem que estimular o desenvolvimento, ter presença, que tem que vida, que tem que ter afeto. A gente precisa de saneamento, de renda básica, de saúde básica.

A gente precisa de boa nutrição, de acesso ao alimento saudável, de proteção contra a violência, da escola, de brincadeira livre em casa, na escola e nas praças, nos parques e nas ruas. A gente precisa novamente de acesso à educação de qualidade, universalização de educação infantil e de educação fundamental. Sem um ambiente saudável, é possível ter crianças saudáveis?

Impactos nocivos do digital

Apesar do uso recente de celular - há menos de dez anos que se espalharam - já percebemos danos. Com essa imersão dessas crianças e adolescentes nas telas do celular, estamos notando muitos problemas sérios. No físico, podemos citar algumas como miopia, sedentarismo, que leva à perda de força, a perda de forma física, cardiovascular, obesidade, posturais.

Especificamente cognitivo, as perdas já são detectadas. As crianças estão aprendendo menos e estão menos atentas. Há a fragmentação da atenção por causa dos vídeos curtos e da facilidade, do encantamento com aqueles videozinhos que há em aplicativos da internet.

Ocorrem também problemas comportamentais. Com muito tempo de uso, há crianças que apresentam irritabilidade, não socializam mais porque ficam muito isoladas e tem problemas sociais. Voltam-se ao consumismo, à futilidade. Enfim, isso vai levando a esse acúmulo depois da perda do sono, principalmente jogando até tarde e ligado nas redes sociais de madrugada. E aí você tem transtornos mentais graves, ansiedade, pânico, depressão, automutilação que está aumentando o mundo.

Depressão

Percebemos aumento de depressão e ansiedade no Brasil entre 2013 e 2023, que é o período onde começa a se distribuir celular entre adolescentes. Então, o crescimento de ansiedade e depressão entre adolescentes no Brasil, nesse período, foi muito maior do que em outros países.

Nos Estados Unidos se percebe 200% de aumento, que já é espantoso. No Brasil, esse aumento registrado pelo SUS chega a 1500% de 10 e 14 anos e 3.300% de 15 a 19 anos. É astronômico o que está acontecendo com a nossa adolescência! Isso precisa ser considerado como problema de saúde pública.

Tirar o celular da criança e adolescente?

Você precisa do celular, seu filho não precisa. Criança de 8 anos, 10 anos, 12 anos não precisa do celular. Se você quiser se comunicar com ele, você pode dar um celular sem internet, que manda mensagem e faz ligações. Há 15 anos, crianças e adolescentes viviam muito bem sem celular.

Criança sabe brincar, ela sabe intuitivamente. Ninguém precisa ensinar uma criança a brincar. A partir de um dia de vida, uma criança já sabe brincar. Ele vai brincar, vai achar uma colher de pau, um pedaço de pano e vai fazer um brinquedo.

E vai afastar a tecnologia?

Para ela poder usar a tecnologia corretamente, antes disso, ela tem que se formar como ser humano. Se uma criança não brinca, não interage com os amigos, não faz exercício, não olha pra uma árvore, não tem contato com a natureza, não tem contato com a luz do dia, não dorme, fica se alimentando mal, ela não vai ser uma pessoa humana.

Esses são os fatores que levaram à formação básica da espécie humana durante milhões de anos. Como que a vai tirar tudo que formou o ser humano de uma criança? Isso é um experimento social que não vai dar certo.

Qual a idade para ter acesso à tela?

Não é impedir o celular antes de 14 anos. Não é isso. Ela pode ser exposta à tela, pode fazer alguma coisa, especialmente televisão. Pode assistir vídeos, filmes, desenho animado, contanto que haja respeito a todas as outras atividades. Não ficar o dia todo. Televisão não tem problema. Não vicia, nem tem algoritmo para mandar um conteúdo inadequado. Não tem golpista, pedófilo, não tem esses riscos maiores que a internet.

Mas é preciso restringir sim. E as redes sociais, de preferência, só entrar com 16 anos. A recomendação, no princípio, é essa. Eu, pessoalmente, recomendo entrar no final do ensino fundamental. Não entrar antes dos 14 anos. O crime se mudou para a internet. Nós fizemos um guia para ser distribuído pela população, a educadores e a famílias para orientar.

Se precisar se comunicar para criança, compra o celular tijolinho, que não tem internet, e entrega mais tarde. Agora, o grande problema é que as crianças estão pedindo celular cedo e isso é um problema porque não querem ficar sozinhas ou serem as únicas que não têm celular.

Escola sem celular

A escola sem celular foi uma grande vitória da infância e tenho muito orgulho de ter sido um dos participantes mais ativos dessa conquista, da lei federal, que proíbe o uso de celulares nas escolas públicas e privadas de educação básica do país.

Na escola, as crianças ficam ali quatro, seis horas, em pausa do mundo digital, e vivendo um mundo real, aprendendo nas aulas e brincando, se movimentando no recreio.

A família

O vínculo entre pais e filhos é fundamental para o desenvolvimento das crianças. O olhar do pai, da mãe, do afeto, do abraço, da conversa, a história à noite, a interação básica, ele é a pista de decolagem para todo o restante do desenvolvimento da criança. Sem isso, não há desenvolvimento saudável possível. Esse desenvolvimento está precarizado. Isso vai prejudicar, obviamente, fundamentalmente, a criança.

Mas a realidade é difícil em muitos lares. Pais estão chegando tarde do trabalho, explorados, que passam duas horas de trânsito, chegam em casa exaustos, trabalhando escala 6x1. Há muita mãe só, trabalhando em escala 6x1, além de cuidar dos filhos, da casa, de um idoso, de um doente, da comida, dela e do marido.

Educação em casa

Para educar uma criança, a gente precisa de intimidade, precisa de convivência. Quando a convive e tem intimidade com o filho, a relação é muito mais gostosa. Mas a gente perde a capacidade de educar. Você tem medo, o filho não sabe o que tem que fazer. A permissividade de famílias que não têm regras, que não conseguem colocar a criança na linha, que deixam a criança conduzir a própria vida. Há, muitas vezes, superproteção, e há filhos que tem o que quer e na hora que quer. Tem o tênis novo que saiu, o celular mais recente… E outro extremo que é pior ainda, é o da violência, que é aquele que dá os piores resultados sempre. Os dois são caminhos opostos para dar uma semelhança.

Palmada educa?

O filho não é propriedade dos pais. É responsabilidade dos pais. Crianças são sujeitos com direitos. Se bater um idoso é crime no Brasil? Se bater uma mulher, se bater um cachorro é crime? Como é que bater uma criança é educação? Isso não faz nenhum sentido. Isso inclui a palmada também.

A violência faz com que essa criança do futuro reproduza o que ela está vivendo na escola, na sociedade. Faz com que ela também tenha os piores resultados em saúde física, mental, social, em aprendizado e em empregabilidade.

A gente ouve muito sobre palmada, que a gente não deve bater e castigar. E há pessoas que dizem: “Meu pai me bateu de cinto, eu sou um cidadão de bem. Hoje sobrevivi! Graças a Deus que ele me bateu, eu sou um cidadão de bem”. Só que essa pessoa que diz isso pode estar tomando três remédios, briga com a mulher, apanha do amigo, está perdendo emprego, não dorme, está infeliz. É esse o cara que sobreviveu à sua infância violenta, muitas vezes. E no lugar de criar pessoas que sobreviveram às infâncias, por que não podemos criar pessoas incríveis por causa da sua infância?

Restringir e supervisionar filhos

Supervisão também é importante. Os pais devem acompanhar, restringir o número de horas, restringir certos aplicativos que são mais nocivos. Adolescente que tem rede social está exposto ao perigo. Existem aplicativos de controle parental para isso. Tem que também fazer educação em casa. Acompanhar junto com adolescente o vídeo que ele está recebendo para fazer ele desenvolver pensamento crítico sobre o que ele está vendo. Mas o mais importante talvez seja enfeitar esse mundo real. É trazer ele de volta para o esporte, para brincadeira, para ir na casa de amigos, para a pracinha. Junte com os amigos e cada um vai brincar com os amigos de uma família, de outra família.

A infância e o brincar

E o que está acontecendo com as crianças em relação ao brincar? Brincar é a essência da infância. Sem brincar, não há infância. Sem infância, não há bem-estar na vida. A infância é brincadeira. As crianças estão brincando cada vez menos, se movimentam cada vez menos. O corpo da gente é feito para o movimento. Senão a gente não teria articulações, músculos e ficava em pé. A gente fica deitado. As crianças ficam sedentárias e isso é péssimo para todos os aspectos de saúde. Não tem mais contato com a natureza, com a luz do dia. É fundamental para a saúde física e mental. Estão confinadas.

As crianças passam quase o dia inteiro dentro de quatro paredes, escola, em casa. Isso é muito sério. Sedentárias, muita exigência de performance, escolas muito conteudistas e exigência dos pais, e muitas vezes o excesso de telas.

Desconecta

Já existem movimentos sociais espontâneos se organizando, como o Desconecta. São pais e mães se mobilizando em favor da redução, controle e adiamento do acesso a smartphones e redes sociais pelos filhos.

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