Igor Maciel: Carta de José Dirceu à militância do PT parece ter sido feita nos anos 1990
O maior erro do PT desde sempre é fingir que escuta quando, na verdade, não escuta ninguém. Todo dirigente petista tem 150% de certeza sobre tudo.

O cientista político Adriano Oliveira fez um comentário jocoso ao escutar trecho da carta escrita pelo líder petista José Dirceu à militância do partido: “Escutando isso eu voltei no tempo, até 1994, quando ainda estava na faculdade como estudante”. Depois, Oliveira explicou que esse é mais um exemplo da desconexão temporal do PT em relação à sociedade. As lideranças do partido não conseguem se desligar do período em que reinou absoluta a popularidade lulista com números que chegavam a mais de 80% de aprovação. “Passaram-se duas décadas e o PT não acompanhou as mudanças na sociedade”, resumiu.
Essa dificuldade para acessar o presente está bem clara no texto de Dirceu, cuja grande solução para o partido é reeditar a estratégia de sempre, de encontrar um “inimigo” e atacar ele “em nome do povo” para assim ganhar seu apoio e seus votos
Patrões
A maior parte da carta faz referências elogiosas a Edinho Silva, o candidato de Lula (e de Dirceu) à presidência nacional do partido. Mas um parágrafo específico, quando aponta soluções para a situação difícil da sigla entre os brasileiros, foi o que mais chamou a atenção pela reciclagem de um método que o partido sempre utilizou que é o de eleger demônios para os quais somente Lula conhece a receita para o exorcismo, “porque é do povo”.
Foi assim quando os inimigos eram os “patrões” e o “imperialismo norte-americano”. Mas o “patrão inimigo” tinha uma limitação, já que o PT não poderia chegar a lugar nenhum apenas com os votos dos operários que trabalhavam nas fábricas. Era preciso ir além. E as fantasias sobre os EUA também não alcançavam a população.
Elites
Vieram então “as elites”. Era uma alternativa perfeita, porque atingia os “patrões”, mas também englobava todos aqueles que pudessem ser responsabilizados apenas por serem ricos. A ideia à venda era que eles eram inimigos porque existe pobreza. E fim da história. O PT, entretanto, ainda tinha dificuldade para encaixar o inimigo social que “o povo precisa odiar”, em seu maior adversário político da época: o PSDB.
Lula perdeu duas eleições presidenciais seguidas para Fernando Henrique Cardoso por não conseguir emplacar a pecha de “elite má” num grupo que estava em evidência por finalmente resolver a inflação e reduzir o custo de vida dos pobres. Somente na metade do segundo mandato de FHC a vinculação começou a funcionar, quando o Brasil foi atingido fortemente por crises internacionais e a economia teve um abalo.
E agora?
Nos oito anos em que Lula foi presidente, surgiu uma nova questão. É que para ser eleito Lula escreveu uma carta (orientado por José Dirceu), comprometendo-se a respeitar o sistema financeiro e as relações de mercado. Não dava, portanto, para seguir usando “as elites” como inimiga.
Mas o maior adversário ainda era o PSDB e os tucanos cumpriram esse papel de contraponto porque também era bom para ele. O inimigo agora era um partido. Na época, a publicação de livros sobre o que chamavam de “Privataria Tucana”, reclamando das privatizações feitas no governo FHC faziam parte dos argumentos. Isso seguiu como falatório por anos, enquanto o próprio PT realizava concessões do governo ao setor privado.
Maluf
O PT costuma mudar de inimigo por dois motivos: quando eles se tornam aliados necessários à sobrevivência do próprio partido ou quando perdem força e se tornam inofensivos.
Um exemplo de como o PT transforma inimigos em aliados quando precisa deles foi o que aconteceu com Maluf, que era chamado de corrupto, ladrão e representava tudo o que o PT reclamava em São Paulo, mas virou um grande aliado quando foi necessário para eleger Haddad.
Depois, o PSDB foi perdendo força e se tornou inofensivo. Os tucanos aceitaram tanto o papel de antagonistas coadjuvantes nos anos de hegemonia petista que afundaram em sua própria insignificância.
Moro
Mas aí veio a Lava Jato e, sob fogo cerrado, os petistas precisavam sobreviver. O inimigo passou a ser Sergio Moro e os procuradores da Força Tarefa.
Se isso ainda não era suficiente, o PT foi buscar todos os “fantasmas do Natal Passado” e de repente Sergio Moro era um “agente dos EUA a serviço das elites brasileiras com fortes vínculos tucanos”. No desespero para criar uma narrativa de perseguição, petistas geraram um super combo com todos os inimigos juntos personificados no então juiz. Era como se a bruxa má da Branca de Neve fizesse parte de uma grande armação incluindo Lex Luthor, o Coringa e a Cuca, todos querendo destruir Lula.
Insignificância
Mas Sergio Moro acabou também se desfazendo em seus próprios erros, tomou mais decisões erradas na vida do que se acreditava ser possível para um ser humano de inteligência mediana e caminhou em passos largos à insignificância. Não servia mais como inimigo.
Então, Bolsonaro começou a ocupar esse lugar quando se resolveu que Lula seria candidato à presidência outra vez. Deu certo, principalmente porque a rejeição ao então presidente era algo impressionante. Ter Bolsonaro como inimigo funcionava perfeitamente, porque ele não ocupa o espaço petista, tem rejeição naturalmente alta pelo tanto de bobagem que fez no poder e aceitava esse papel de antagonista porque se beneficiava dele.
Mas ficou inelegível cedo.
Bolsonaro
O governo Lula 3 passou dois anos tentando jogar a culpa de tudo o que acontecia em Bolsonaro, mas não funcionava. Não é que Bolsonaro fosse um santo no qual nenhuma crítica pegue. Pelo contrário. É que ele se tornou insignificante ao ficar inelegível. Que inimigo é esse que, fora a verborragia, não tem força nenhuma para nada?
Imagine se alguém escrevesse uma história inteira na qual o Batman luta contra um inimigo que não tem poder nenhum e não pode ameaçá-lo. Alguém levaria a “luta” a sério?
A nova comunicação do governo até buscou reforçar esse antagonismo, mas logo percebeu que não funcionava muito bem e deixou o assunto desaparecer.
Carta 1
Aí apareceu Dirceu, com seus eleitos para novos inimigos. Disse ele: “É preciso uma verdadeira mudança na vergonhosa concentração de renda e no cartel bancário financeiro, na política de juros e nas metas da inflação, que exigem uma radical reforma tributária e financeira, capaz de pôr fim à apropriação e expropriação da renda nacional pelo capital financeiro e agrário, num circuito entre o Banco Central e a Faria Lima, que cada vez mais concentra renda, via os juros altos únicos no mundo”, escreveu o líder petista.
Dirceu ignora (de propósito) que a tal “vergonhosa concentração de renda” continuou ao longo das últimas duas décadas em que o PT governou mais da metade do tempo. Ignora também que poucas instituições foram tão beneficiadas pelo governo Lula, na época em que ele próprio era o todo poderoso, quanto os bancos. E não sou eu quem diz isso, são os aliados, como Guilherme Boulos (PSOL).
Carta 2
A carta de Dirceu continua: “O serviço da dívida pública e praticamente a isenção histórica que gozam nossas elites da obrigação de pagar impostos limitam nossa capacidade de investimento, impedem que o Estado financie o gasto social, com o agravante de que a saída de uma elite que representa 1% da população é exatamente a manutenção do status quo e o fim do Estado de Bem-Estar Social, com o desmonte dos bancos públicos, das estatais e da nossa capacidade de planejar e financiar o desenvolvimento nacional”.
Em outras palavras, o inimigo agora são os bancos privados, o Banco Central, o mercado financeiro e o agronegócio.
Bolsa
A ideia de Dirceu é antiga, sem lógica e fadada ao fracasso na intenção de apontar o futuro do PT porque ela diz mais sobre o passado do que sobre o que ainda vem. Não tem muita base na realidade do presente.
Tentar vincular o mercado financeiro a uma elite distante do povo é um erro elementar. O número de pessoas de classe média que investe na Bolsa cresceu em relação às décadas passadas. Há muitos jovens, inclusive, que estudam pelo YouTube para ganhar dinheiro com ações e são operadores do mercado. Por mais que Dirceu tente explicar que o inimigo não são eles mas as elites, todos vão se chatear.
Salvar
Outro erro elementar está no ataque ao agronegócio. O setor é o que tem sustentado o PIB brasileiro. Qualquer medida que os afete, afetará a única coisa que o governo Lula ainda comemora que é o crescimento do país.
Por fim, o Banco Central está agora sendo presidido por um indicado de Lula e todo o argumento para os aumentos da taxa Selic são baseados na necessidade de a gestão ter mais responsabilidade com as contas públicas.
Se o PT ouvisse mais do que falasse, entenderia que o Banco Central é visto como instituição responsável que garante a segurança da economia.
Atacar o BC é um erro. Pode funcionar com os militantes petistas, mas se apenas os militantes petistas fossem suficientes para salvar o PT, ninguém precisaria salvar o PT.
Escutar
O maior erro do PT desde sempre é fingir que escuta quando, na verdade, não escuta ninguém. Todo dirigente petista tem 150% de certeza sobre tudo, mesmo que nunca tenha se dado ao trabalho de perguntar o que exatamente o povo que eles defendem realmente pensa.
Com o tempo as narrativas se esgotam e começa a acontecer uma desconexão. José Dirceu parece ter 150% de certeza sobre tudo, mas não parece, no texto, ter parado para escutar ninguém sobre o mundo de hoje, distante daquele em que o governo petista tinha 80% de aprovação e ele era ministro. O tempo passou, e ele não viu.