Três meses após barbárie no Recife, projetos de lei sobre torcidas organizadas estão parados na Alepe
Propostas criadas após selvageria ocorrida no dia 1º de fevereiro entre torcidas de Santa Cruz e Sport não avançaram no Legislativo estadual

O dia 1º de fevereiro de 2025 ficou marcado na história do futebol pernambucano por causa das violentas brigas ocorridas entre torcidas organizadas de Santa Cruz e Sport antes do Clássico das Multidões pelo Campeonato Pernambucano. A selvageria daquela tarde de sábado foi registrada em chocantes vídeos que foram compartilhados à exaustão pelas redes sociais.
A repercussão da barbárie motivou a criação de pelo menos sete projetos de lei, requerimentos e pedidos de audiência na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), com o objetivo de discutir e reprimir a atuação desses grupos uniformizados, punir os responsáveis pelos crimes e prevenir novos confrontos. Passados exatos três meses do episódio, nenhum projeto avançou.
No dia 5 de fevereiro, ou seja, quatro dias após os eventos, o deputado Alberto Feitosa protocolou dois Projetos de Lei Ordinária sobre o assunto. Um deles propõe a criação do “Cadastro de Maus Torcedores”, que prevê a aplicação de sanções administrativas a torcedores flagrados praticando tumulto, depredação ou atos de violência em estádios, arenas e vias públicas.
Segundo o texto, essa lista seria criada e mantida pelo governo de Pernambuco, reunindo dados que seriam utilizados para impedir essas pessoas de frequentarem estádios, arenas esportivas e participar de programas sociais do governo.
Na justificativa, o autor citou os atos ocorridos no dia 1º de fevereiro: “cenas de medo, violência e selvageria tem se tornado uma preocupação de ordem pública, ameaçando não só a integridade física e psicológica dos torcedores, mas também dos cidadãos pernambucanos”.
Outro projeto apresentado por Feitosa estabelece a criação do Cadastro Estadual de Torcidas Organizadas de Pernambuco, que identifica cada torcida, os membros, o histórico de participação em eventos esportivos e o registro de incidentes registrados pelas polícias.
Este mesmo projeto de lei também propõe a criação do Programa Estadual de Conscientização e Pacificação Esportiva, que teria a finalidade de realizar ações educativas nas escolas, clubes e comunidades sobre cultura de paz no futebol.
No dia 11 de fevereiro, o deputado Joel da Harpa (PL) apresentou um projeto de lei que estabelece normas para a criação e cadastramento das torcidas organizadas em Pernambuco.
As uniformizadas seriam obrigadas a ter estatuto social registrado em cartório, relação de membros com nome, CPF e endereço, indicação de responsáveis legais, relatório de atividades e eventos e cadastro biométrico. A pauta também diz que as torcidas serão responsáveis pela conduta dos seus membros dentro e fora dos estádios.
No texto, o parlamentar defende que o registro das torcidas junto à Federação Pernambucana de Futebol (FPF) permitirá um “maior controle sobre suas atividades, garantindo a identificação dos seus membros e dirigentes, reduzindo a atuação de indivíduos que se utilizam dessas associações para cometer atos ilícitos”.
Os projetos nunca foram colocadas em pauta. Segundo Alberto Feitosa, que é presidente da comissão de Constituição, Legislação e Justiça e autor de duas das propostas, os projetos não avançaram no colegiado porque há muitas matérias acumuladas deixadas pelo presidente anterior da CCLJ. Feitosa assumiu a comissão em fevereiro deste ano.
O parlamentar também afirmou que os textos sobre as torcidas organizadas estão sendo analisados em conjunto pela procuradoria, que vai dirimir pontos repetidos do texto para chegar a um substitutivo único. Somente após essa análise as matérias começarão a tramitar.
Audiências públicas que nunca aconteceram
Pelo menos duas solicitações de audiência pública para discutir a violência das torcidas organizadas foram protocoladas na Alepe após os confrontos de fevereiro, mas elas nunca aconteceram.
O deputado João Paulo (PT) enviou uma solicitação de audiência junto à comissão de Segurança Pública da Assembleia no mesmo dia em que as violências aconteceram. “Precisamos dialogar com todos os atores envolvidos e buscar soluções que garantam a paz e a segurança nos estádios e nas ruas da nossa cidade”, disse o parlamentar na época. O encontro não foi realizado.
Três dias depois, o então deputado Kaio Maniçoba (PP), hoje secretário estadual de Turismo e Lazer, também apresentou um pedido. “É necessário a realização de um debate amplo e urgente”, dizia o requerimento, que convocava agentes públicos, entidades esportivas, Ministério Público, forças de segurança e a sociedade civil para a discussão.
“Solicitamos que esta audiência seja agendada com a maior brevidade possível, para que possamos discutir e implementar medidas que eliminem de forma definitiva esses confrontos, garantindo a preservação da vida e da segurança dos cidadãos recifenses”, argumentou o parlamentar. O requerimento foi aprovado em plenário no dia 10 de fevereiro, mas a audiência nunca ocorreu.
Ao JC, Alberto Feitosa afirmou que vai propor a realização de uma audiência pública no dia 13 ou 20 de maio para tratar da violência das torcidas. Até o fechamento desta matéria, os requerimentos ainda não haviam sido apresentados.
Frente Parlamentar aguardando liberação
No dia 5 de fevereiro, pouco dias após os episódios violentos, o deputado Sileno Guedes, líder do PSB na Assembleia, propôs a instalação da Frente Parlamentar de Combate à Violência em Eventos Esportivos.
Na justificativa, o parlamentar argumentou que o grupo tem o objetivo de discutir, propor e fiscalizar medidas que reduzem a violência nos eventos esportivos, “garantindo a segurança da população e promovendo a cultura da paz nos estádios e em seu entorno”.
Entre as ações previstas pela Frente estão a realização de debates e audiências públicas com autoridades, clubes, federações esportivas, torcidas organizadas e a sociedade para discutir medidas de segurança, além de acompanhar e fiscalizar a implantação de políticas públicas voltadas à segurança nos estádios e arredores.
De acordo com o projeto, o grupo será coordenado pelo deputado Rodrigo Farias (PSB) e terá como membros os parlamentares Edson Vieira, Fabrizio Ferraz, João de Nadegi, João Paulo Costa, Mário Ricardo, Renato Antunes, Sileno Guedes, Waldemar Borges, Wanderson Florêncio, William Brigido.
Contudo, a Frente ainda não foi instalada. Segundo Sileno, o projeto está aguardando a inclusão na pauta de votação no plenário para que os trabalhos possam ser iniciados. Não há prazo para isso acontecer.
Ainda na época dos episódios violentos, Sileno também tentou apresentar um requerimento convocando o secretário de Defesa Social de Pernambuco, Alessandro Carvalho, e o comandante-geral da Polícia Militar, coronel Ivanildo Torres, para explicar a violência ocorrida nas ruas, mas não obteve o número mínimo de 25 assinaturas para protocolar o pedido. “Não houve interesse”, disse o deputado ao Jornal do Commercio.
"Alepe está atenta"
Procurado pela reportagem, o presidente da Alepe, Álvaro Porto (PSDB), disse que a Assembleia tem trabalhado para que a violência entre as torcidas de futebol seja reprimida. Ele afirmou que os projetos serão apreciados pelo plenário no tempo devido.
"Nossa expectativa é que os projetos possam assegurar punição a quem usa o futebol para praticar agressões e espalha terror. Torcemos para que as cenas lamentáveis e inadmissíveis que temos visto em Pernambuco sejam combatidas e não se repitam", disse Álvaro, por meio de nota.
"Já recebemos, na Alepe, os presidentes dos principais clubes pernambucanos para tratar da violência produzida pelas torcidas organizadas e entendemos que a repressão com o uso contínuo da inteligência policial é o caminho para se enfrentar os criminosos que se infiltram nas torcidas e promovem confrontos", completou o comunicado.
O presidente da comissão de Esportes da Alepe, deputado Renato Antunes (PL), ressaltou que as matérias não chegaram até o colegiado porque ainda não passaram pelas comissões iniciais, como a CCLJ, mas se comprometeu a agilizar a tramitação assim que houver a possibilidade.
"Tenha certeza que vamos acelerar o máximo que a gente puder para levar para plenário, uma vez que a gente entende a importância dessa matéria. Nem toda torcida organizada deve ser marginalizada nesse sentido, mas deve haver um controle para impedir que situações horrorosas e bárbaras como aquelas voltem a acontecer", declarou.
Clubes assinaram compromisso com o MPPE
Após os eventos de fevereiro, os presidentes de Náutico, Santa Cruz e Sport assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público de Pernambuco se comprometendo a romper relações com as torcidas organizadas.
O documento listou 16 obrigações aos times, como não fornecer recursos financeiros às uniformizadas, não reservar setores exclusivos para elas nos estádios, proibir a entrada de membros nos jogos e excluir membros desses grupos do quadro de sócios ou do quadro de funcionários dos clubes.
De acordo com o Ministério Público de Pernambuco, todos os envolvidos estão colaborando para o cumprimento do TAC até este momento, enviando informações periódicas à entidade.
“Os clubes vêm apresentando relatórios sobre a temática, assim como os órgãos de segurança. Da mesma forma, o Ministério Público acompanha todos os jogos com base nas informações fornecidas pelas polícias. Até o momento, não existe ocorrência de descumprimento do TAC”, informou a assessoria de imprensa do MPPE ao Jornal do Commercio.
A reportagem também procurou o Trio de Ferro para entender o cenário atual de relação com as organizadas.
Em nota, a direção do Clube Náutico Capibaribe afirmou que o clube vem cumprindo rigorosamente as determinações pactuadas junto ao Ministério Público. “O Náutico, muito antes da assinatura do TAC, já vinha realizando ações de conscientização junto a todas as torcidas organizadas do clube”, diz o comunicado.
O Santa Cruz Futebol Clube também afirmou que segue estritamente as obrigações pactuadas no termo. Em nota, o clube disse que possui uma central de monitoramento 24 horas com 115 câmeras, com previsão de ampliação. "Todos os esforços estão sendo feitos para cumprir o prazo da Lei Geral do Esporte que dispõe sobre a implantação de reconhecimento facial", completou o comunicado.
Também por meio de nota, o Sport Club do Recife informou que vem cumprindo integralmente as medidas estabelecidas no TAC e mantém diálogo constante com o MPPE e com a Polícia Militar por meio de reuniões periódicas. Em relação à estrutura física, o clube rubro-negro declarou que a biometria facial está 100% implantada desde fevereiro e que, desde então, o cadastramento facial é obrigatório para acessar a Ilha do Retiro.
"O Sport tem adotado medidas para impedir a entrada de quaisquer adereços que remetam à sua principal uniformizada, como uniformes, bandeiras, faixas e instrumentos. Solicitações para ingresso com esses materiais sequer são encaminhadas à Polícia Militar para avaliação. Caso qualquer adereço relacionado à referida torcida seja identificado nos acessos ao estádio, o material é prontamente retido pela PM", diz uma nota enviada ao JC.
"O clube adota medidas internas para responsabilizar eventuais infratores. Sempre que um caso é identificado, ele é encaminhado ao Conselho Deliberativo, que avalia as sanções administrativas cabíveis. Inclusive com a possibilidade de exclusão do quadro de sócios", concluiu o comunicado.
Responsáveis foram presos
A reportagem procurou o governo do estado para saber quais ações foram implantadas após os atos. De acordo com a secretaria de Defesa Social, 12 pessoas foram presas em flagrante no mesmo dia dos confrontos. Em seguida, foi deflagrada a operação Contra Pista, que já identificou e investiga outras 45 pessoas, incluindo três menores de idade.
No mês de março, a ação prendeu mais 21 envolvidos, sendo 12 membros da Jovem do Sport e nove da Explosão Inferno Coral. Os crimes investigados são de tentativa de homicídio, associação criminosa, corrupção de menores e provocação de tumulto.
A SDS também informou que, nos dias de jogos, a Polícia Militar emprega policiamento ostensivo nas áreas interna e externa dos estádios, além das principais vias de acesso, com militares especializados da seção de inteligência. Guarnições também atuam em estações de metrô e terminais de ônibus para garantir a segurança dos torcedores no deslocamento.
O Centro Integrado de Comando e Controle Estadual também realiza monitoramento por câmeras. "O trabalho das forças de segurança continuará sendo pautado na prevenção, no monitoramento e na repressão qualificada, para garantir que o futebol em Pernambuco seja um espaço de celebração e não de violência", diz o comunicado.