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Recife em fuga: o dia em que um boato sobre a barragem de Tapacurá espalhou pânico, provocou mortes e parou a cidade

Cinco décadas depois do boato que espalhou medo de um rompimento da barragem de Tapacurá, a cidade ainda guarda as marcas daquele 21 de julho de 1975

Por Adriana Guarda Publicado em 20/07/2025 às 20:50

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O relógio mal passava das 10h da manhã quando o Recife foi tomado por um fenômeno invisível e devastador: o pânico. A notícia, sussurrada de boca em boca, se alastrou com a força de um raio: “A barragem de Tapacurá estourou!”. Ninguém sabia a origem exata do boato, mas a cidade acreditou — e correu. Literalmente.

Em seu livro "Tapacurá - No planeta dos boatos", o jornalista Homero Fonseca narra a tragédia. Carros foram abandonados no meio da rua, mães invadiram escolas para resgatar os filhos, ambulantes deixaram suas bancas. Pessoas se empurravam para subir nos ônibus, outros desciam pelas janelas. Os carros ignoravam os sinais de trânsito e andavam na contramão. Funcionários da saúde abandonavam os hospitais. Era cena de hospício.

No oitavo andar do prédio da Secretaria da Fazenda, no bairro de Santo Antônio, o então secretário Gustavo Krause olhava pela janela quando viu a cidade em colapso. “As pessoas largavam carros, corriam sem saber para onde. O medo era tanto que houve gente internada com problemas cardíacos”, lembra.

Pedro Luiz/Cortesia
Governador Moura Cavalcanti ajuda idosa em meio ao tumulto nas ruas do Recife, no dia 21 de julho de 1975 - Pedro Luiz/Cortesia

A poucos metros dali, do lado de fora do Palácio do Campo das Princesas, o governador Moura Cavalcanti soube do alarme falso, desmentiu o boato na rádio e correu para as ruas para tentar conter a multidão com a única arma que tinha: a própria presença. Na confusão, amparou uma idosa que passava mal no meio do tumulto. O gesto ficou eternizado em uma imagem do fotojornalista Pedro Luiz, hoje com 87 anos.

Testemunha daquele dia de caos, Pedro correu pelas ruas do Centro, documentando a angústia de uma cidade à flor da pele. Seu olhar não registrou apenas uma cena simbólica, mas ajudou a preservar a memória visual de um episódio jamais esquecido pelo medo, mas que carece de documentação.

“Mesmo que a barragem tivesse rompido, a água não chegaria ao Recife”, explica Krause. “Mas o pânico já estava instalado no imaginário das pessoas. Foi um medo coletivo, uma reprise do filme de terror vivido dias antes.”

Quatro dias antes, para ser exato, a cidade havia enfrentado a maior enchente de sua história recente. A cheia do Capibaribe havia submerso ruas, invadido casas, expulsado famílias inteiras. Quando o boato irrompeu, no dia 21 de julho, a população ainda não havia se refeito. “O Recife estava com os nervos à flor da pele”, diz Krause. “Era como se a cidade tivesse sangrado — e, de repente, sentisse que o sangue voltava a jorrar.”

O que se viu naquele 21 de julho de 1975 foi um êxodo urbano sem precedentes. O boato se espalhou rápido demais para ser contido. Nas ruas estreitas do Bairro de São José, na Dantas Barreto, na Rua Nova, uma maré humana tomava o asfalto. Do cais ao alto da Boa Vista, o Recife corria. E corria sem saber de quê.

Thiago Lucas
Gritos, correria e desesperam marcaram o dia 21 de julho de 1971 - Thiago Lucas

A enchente de dias antes já havia deixado 350 mil pessoas desabrigadas. O medo ainda morava nos olhos de quem perdeu casa, documentos, móveis, vizinhos. “As notícias iam chegando: ‘A água chegou em tal ponto’. E a gente pensava: ‘Meu Deus do céu, isso não vai parar’", lembra Gustavo Krause. A cidade sangrava, e a desinformação agiu como um novo corte aberto.

Na Secretaria da Fazenda, Krause testemunhou o desenrolar do pânico de um ponto estratégico. Do alto do oitavo andar, viu o que chamou de “espetáculo do pânico social”. E desceu correndo. “Fui direto ao Palácio do Governo, que funcionava como centro de informações. Lá estavam o governador e a Casa Militar. A confirmação era de que a barragem não havia rompido.” Mas já era tarde. A cidade havia acreditado.

A catástrofe climática e social mobilizou o governo federal. Nos dias seguintes, o presidente Ernesto Geisel sobrevoou a cidade e se reuniu com o governador. “Quando as águas começaram a baixar, o governador entrou em contato com o presidente Geisel, que veio pessoalmente ao Recife com sua equipe para compreender a dimensão do desastre”, relembra Krause. “Fiz uma apresentação rigorosa dos danos econômicos e fiscais. Falei sobre a inadimplência e os efeitos a médio prazo na arrecadação do Estado", conta.

O resultado foi um pacote de ações que uniu emergência e planejamento. “Já existia a barragem de Tapacurá, mas ela precisava ser ampliada e complementada por outras: Goitá, Jucazinho, Botafogo. Além disso, foi feita a ampliação da calha do Capibaribe e houve liberação do Fundo de Garantia para os afetados”, afirma.

Créditos subsidiados para o comércio, apoio técnico para drenagem, reforço na contenção dos rios. “Houve um compromisso assumido e cumprido, tanto pelo governo estadual quanto pelo federal. Foi uma providência feliz: atacar os pontos que, a curto prazo, prejudicaram violentamente o Recife, mas que, de certa forma, evitaram enchentes definitivas.”

Thiago Lucas
População subia em casas, prédios e até árvores, com medo que a água chegasse - Thiago Lucas

Ainda entre águas e boatos

Meio século depois, o Recife continua entre o mar e os rios — mas também entre a memória e a repetição. “A água é uma bênção, mas se não cuidarmos dela, não porque ela se vingue, mas porque ela cobra um preço”, diz Krause.

O que houve em 1975 não foi apenas uma tragédia natural ou um pânico social: foi o retrato de uma cidade vulnerável nas condições geográficas, sociais e institucionais. E se o boato foi a faísca, o combustível foi a ausência de confiança, de estrutura, de cuidado com o território.

Hoje, em tempos de fake news, Krause deixa um alerta: “A fake news é o boato misturado com inteligência artificial, algoritmo, não sei o quê. É o aperfeiçoamento tecnológico do boato", pondera. 

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