URBANISMO

Balsas, bondes, ônibus e outros: passeie pela história dos diferentes meios de transporte do Recife

Cada meio de transporte público já adotado na capital pernambucana transcreve um pouco da sua própria história e revela a tecnologia já disponível no recorte temporal em que funcionou

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Katarina Moraes

Publicado em 25/07/2021 às 6:30 | Atualizado em 09/03/2023 às 13:50
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À medida que centros urbanos são criados, com a chegada de novos moradores e da expansão do comércio, as cidades vão se adaptando às novas dinâmicas. Um dos aspectos que precisa acompanhar essa revolução é a mobilidade, que pensa como os habitantes vão se deslocar no dia a dia.

No Recife, não foi diferente. Cada meio de transporte já adotado na capital pernambucana transcreve um pouco da sua própria história e revela a tecnologia já disponível no recorte temporal em que funcionou. Por isso, o JC te convida a passear por cada um deles e a entender os caminhos que levaram a cidade acender, hoje, alerta vermelho para os atuais transportes públicos.

Inicialmente, o vilarejo “Arrecife dos navios”, cuja importância girava em torno do porto, tinha como principal meio de locomoção as canoas, usadas até mesmo para trazer água potável de Olinda - sede da capitania de Pernambuco - até o agrupamento, que carecia de saneamento.

Utilizadas, segundo o historiador Leonardo Dantas Silva, até o final do século XVIII. “As comunicações do porto com esses centros produtores eram feitas, até bem recentemente, através dos rios, usando-se para isso a canoa, a alvarenga e outros tipos de embarcação. Era [um transporte] acessível, mas o ‘povão’ mesmo ia a pé”, conta.

Os holandeses, após provocarem um grande incêndio em Olinda, em 1631, decidiram ocupar o pequeno núcleo “rurbano” - como define Leonardo - e transformá-lo, posteriormente, na “Cidade Maurícia”. “Uma população enorme, calculada em mais de 7 mil pessoas, teve de se comprimir no Recife e em Antônio Vaz”, pontua o historiador José Antônio Gonsalves de Mello. O centro foi feito sobre o que hoje compreende os bairros de Santo Antônio, São José, Cabanga e Ilha Joana Bezerra, área central do Recife.

“Não consigo falar sobre mobilidade sem falar de um sistema de deslocamento. Tudo depende de como a cidade vai planejar onde estão as habitações, onde moram as pessoas, onde estão localizados os empregos e as atividades econômicas; é disso que o transporte vai depender. O meio de transporte sempre também esteve muito articulado a toda uma política de acúmulo de capital dentro da cidade, não é só um serviço, do ponto de vista técnico, mas articulado com o planejamento de crescimento da cidade”, afirma a arquiteta e urbanista da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Circe Monteiro.

Assim, só na Mauricéia, sob administração do conde João Maurício de Nassau, a mobilidade da cidade começou de fato a ser pensada. Preocupado com a integração do primitivo sistema urbano da capital, então formada por ilhas sem ligação entre si, o governador da colônia neerlandesa determinou que duas pontes fossem construídas; a "Ponte do Recife" - que ligava o istmo do Recife à Ilha de Santo Antônio -, localizada na atual Ponte Maurício de Nassau, e a outra que ligava a Ilha de Santo Antônio à Boa Vista, chegando à Rua Velha, onde hoje está a Ponte 6 de Março, ou Ponte Velha.

“Foi ainda por iniciativa do conde João Maurício de Nassau que o Recife conheceu a primeira carroça, que viera anteceder a carruagem trazida de Lisboa pelo bispo Dom Diogo de Jesus Jardim em 1785”
Leonardo Dantas Dias em seu livro O Recife 1900 - A vida em três décadas.

Segundo o historiador, as primeiras estradas da cidade só vieram a ser construídas sob a gestão de Dom Tomás José de Melo, entre 1787 e 1798, com a Estrada de Casa Forte, que unia o local à Cruz das Almas, atual Parnamirim, pelo que hoje são conhecidas como avenidas Parnamirim e Dezessete de Agosto. Depois, foram feitas também as ‘estradas suburbanas’ - que, no final do século XX, já somavam 32 quilômetros. Foram elas que permitiram que carros puxados a cavalo começassem a ser utilizados.

O primeiro transporte coletivo viria a funcionar na cidade em 1847, com as diligências - tipo de carruagem fechada de quatro rodas utilizada para o transporte de passageiros e mercadorias -, uma alternativa no Recife até 1876. Um estudo da engenheira Débora Gonçalves Vasconcelos, da UFPE, ainda aponta que, em 1963, assinou-se um contrato para que a empresa "Trilhos Urbanos do Recife e Apipucos”, a futura “Brazilian Street-Railway”, assentasse a primeira via férrea da cidade.

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A mania de grandeza dos pernambucanos pôde ser exaltada em 1867, quando o Recife se tornou a primeira cidade da América Latina a ter um sistema urbano de transporte sobre trilhos: as Maxambombas. Mais acessíveis que as carruagens, a pequena locomotiva ajudava as pessoas entre o fim do século 19 e início do século 20 a se locomoverem mais rápido pela cidade.

“As maxambombas, trifurcando-se a caminho de Dois Irmãos, do Arraial, da Várzea, com seus apitos e seus barulhos de vapor, batizaram o Largo do Entroncamento. Sumiram-se os trenzinhos suburbanos, demoliram a velha estação de três plataformas, porém o nome ficou nas bôcas de novas gerações. [...] até a novidade da maxambomba, que leva tão depressa os passadores de festas a Apipucos ou Caxangá"
Mário Sette em seu livro “Arruar - História Pitoresca do Recife Antigo”.

Os olhos mais atentos já devem ter notado os trilhos que cortam parte do piso de paralelepípedo do bairro do Recife - ou Recife Antigo -, na área central da capital.

Tais linhas de ferro carregam a lembrança dos tempos em que a cidade se locomovia de uma forma diferente e primitiva - mas, definitivamente, mais charmosa - do que hoje: com os bondes elétricos. Estes foram consolidados em 1917, pela Pernambuco Tramways durante o governo de Dantas Barreto, que chegou a ter 139 bondes e 77 reboques até o final da operação.

Além de serem considerados rápidos e limpos, estudo da Fundação Joaquim Nabuco afirma que, “apesar da divisão de alguns bondes em 1ª e 2ª classe, e da loré, compartimento de carga, também ocupado por passageiros que buscavam passagens mais baratas, eles se constituíram em espaços que possibilitavam uma convivência mais estreita entre os diferentes grupos sociais da cidade”.

Mais tarde, o moderno meio de transporte começou a causar constantes acidentes, além de apresentar uma lotação exagerada em uma cidade com população de cerca de 348 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) da época.

Tudo isso fez com que os bondes passassem a ser vistos como obsoletos no final dos anos 1940. “Aos poucos, eles foram cedendo espaço aos ônibus, e terminavam por serem retirados, o que foi uma coisa triste, porque é um meio de transporte sustentável e baseado em energia elétrica”, lamentou o engenheiro e doutor em Transportes Oswaldo Lima Neto.

Então, os trólebus, como também eram chamados os ônibus elétricos, entraram em cena nos anos de 1960 e fizeram parte do cenário urbano da capital pernambucana até o início dos anos 2000. Ligados por uma fiação elétrica aérea, chegaram como uma grande inovação: eram confortáveis, não poluentes e silenciosos. Segundo registrou a coluna Mundo Bit na reportagem “Antigo ônibus elétrico do Recife chegou como inovação e saiu de cena odiado”, em seu tempo áureo, havia mais de 160 deles nas ruas do Recife.

“Andei muito nele para ir à escola. Lembro que quando chovia, levava choque, mas mesmo assim gostava muito, bons tempos que não voltam mais”, comentou Marlene Alvarenga na página Recife Antigamente. Entretanto, a falta de manutenção nos veículos - que provocava choques elétricos - fez com que eles perdessem usuários. O que não faltam são relatos de quem viu os problemas de perto.

“Lembro que quando as bananas caíam o engarrafamento ficava triste”, disse Rita de Cássia sobre a queda da fiação. “Eu adorava andar em ônibus elétrico, era macio e o zumbido suave”, contou Alice Alcântara.

TERCIO SOLANO/ACERVO JC IMAGEM e FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
À esquerda, ônibus elétricos na Avenida Cruz Cabugá, Centro do Recife. À direita, atuais meios de transportes na mesma avenida - TERCIO SOLANO/ACERVO JC IMAGEM e FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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À esquerda, bondes elétricos na Avenida Marquês de Olinda, Centro do Recife. À direita, mesma avenida, mas vazia - ACERVO JOSEBIAS BANDEIRA/VILLA DIGITAL/FUNDAJ e FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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À esquerda, maxambomba em frente à Faculdade de Direito do Recife. À direita, Faculdade de Direito do Recife nos dias de hoje - REPRODUÇÃO/RECIFE ANTIGAMENTE e REPRODUÇÃO/GOOGLE STREET VIEW
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À esquerda, bondes elétricos na Rua Nova, Centro do Recife. À direita, atuais meios de transportes na mesma rua - ACERVO BENÍCIO DIAS/VILLA DIGITAL/FUNDAJ e BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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À esquerda, bondes elétricos na Rua do Imperador, Centro do Recife. À direita, atuais meios de transportes na mesma rua - ACERVO BENÍCIO DIAS/VILLA DIGITAL/FUNDAJ e FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

Os transportes públicos que resistem e a prevalência de veículos individuais

O Metrô do Recife (Metrorec) começou a funcionar em 1985, após começou a funcionar em 1985, após desativação da antiga Estação Central do Recife, que hoje funciona como um museu que conta a história do meio de transporte na capital.

“Em 1998, foram iniciadas as obras de expansão da linha centro, a partir da estação Rodoviária até Camaragibe e a eletrificação de 14,3km da linha sul, entre as estações Recife e Cajueiro Seco, com nove estações. A linha diesel opera entre as estações do Cabo, no município de mesmo nome, e o bairro de Cajueiro Seco, onde faz integração com o sistema elétrico (metrô)”, conta o site da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU).

Hoje, o sistema vive rodeado de mazelas. Com falta de recursos, faltam manutenções e investimento em tecnologia que sejam capazes de torná-lo minimamente digno à população. A coluna Mobilidade, do JC, trouxe em junho deste ano dados que apontam que o Metrô do Recife registrou 132 falhas, paralisações e, consequentemente, evacuações entre 2020 e maio deste ano. Ainda, 15 dos 40 trens que compõem a frota metroferroviária estão parados sem condições de voltar a operar pela ausência de peças. Além de tudo isso, em meio à pandemia da covid-19, que exige distanciamento, os trens foram flagrados lotados diversas vezes.

“Há muito tempo, o metrô não vem recebendo dinheiro para manter a operação, e tem mais de 30% da frota parada por falta de peças e de manutenção. Para rodar, começam a tirar peças dos que estão parados para manter outros funcionando. O gestor anterior declarou diversas vezes que o metrô deixaria de funcionar pela absoluta falta de condições. Ele foi substituído, e o metrô continua funcionando de forma precária. Outro dia, vi nas redes sociais passageiros empurrando uns aos outros para caber dentro do vagão em meio à pandemia; esse é um estado de calamidade”, afirma Oswaldo Lima.

A lotação também é problema nos ônibus coletivos do Grande Recife Consórcio de Transporte, empresa que opera na Região Metropolitana do Recife, durante a emergência sanitária, mas também antes dela.

“O sistema de transporte da Região Metropolitana vinha perdendo cerca de 200 mil passageiros por mês antes da pandemia, que, pela má qualidade do serviço, adquiriram uma moto ou passaram a se locomover de bicicleta ou a pé. Com a pandemia, a desgraça se aprofundou: no começo, caiu de 80% a 85% da demanda no começo, enquanto tinham a obrigação de manter a oferta superior à demanda pela questão sanitária, coisa que nunca fizeram corretamente”, analisou o especialista em transportes.

Com queda de demanda e poucos subsídios que permitam equilibrar as contas, a consequência cai sobre o preço da passagem. Neste ano, o Anel A, que antes era R$ 3,45, passou a ser R$ 3,75. Já o Anel B, passou de R$ 4,70 para R$ 5,10 - um reajuste tarifário de 8,7% e 8,5% respectivamente.

“É um serviço que peca muito pela falta de qualidade e de respeito pelo usuário, mas é uma empresa de sociedade privada, que prevê a geração de lucros. A classe média anda muito pouco de ônibus, tem preconceito. É uma cidade com grande desequilíbrio social e o transporte público é visto como se fosse para a população pobre. Por isso, é tão sem qualidade. Em todo mundo, o transporte público é destinado a toda a população”, comentou Circe.

Muito disso aconteceu quando, em paralelo aos bondes, também chegaram à cidade os primeiros automóveis no início do século XIX, que logo viraram prioridade na mobilidade do Recife em relação ao transporte público; uma lógica que, ainda hoje, prevalece no Brasil. Em 2020, aproximadamente 1,4 milhão de veículos circulavam em Pernambuco segundo a Base de Dados do Estado. Só na capital, eram mais de 400 mil. 

“Há mais de um século que o trânsito de veículos vem sendo um dos problemas dos administradores da cidade do Recife. Em nome desse trânsito, foram alargadas ruas, destruídos becos e quarteirões de prédios coloniais, demolidos templos e até as seculares portas do primitivo núcleo. O melhor do passado histórico do Recife cedeu ao determinismo do “progresso” dos nossos dias, sem que o burburinho do trânsito tenha, em sua problemática, qualquer solução definitiva a médio prazo”, comentou Leonardo Dantas.

Para o especialista Oswaldo Neto, é preciso que o poder público - municipal, estadual e federal - tenha sensibilidade para enxergar como o “transporte público é essencial para a vida da sociedade e da economia”.

“Desde Getúlio Vargas, o governo vem ajudando a posse de automóvel - diminuindo impostos e fazendo com que as pessoas o adquiram; mas sabemos que essa não é uma política correta. Recife está começando a olhar para essa questão, mas ainda muito aquém da necessidade e importância que o transporte público deve ter. Vamos esperar que os governantes abram os olhos, procurem se sensibilizar por essa questão e que a coisa possa melhorar”, disse.

A Prefeitura do Recife, por sua vez, afirmou por nota que, desde 2013, investe em "projetos para inverter a lógica da mobilidade, que garante a prioridade das pessoas e não dos veículos. Dessa forma, o aumento de faixas exclusivas para transportes público, malha cicloviária e áreas de pedestres se tornou meta da gestão de trânsito do Recife. Atualmente, o Recife conta com 154 km de rotas cicloviárias, 65 km de rotas exclusivas para ônibus e mais de 30 áreas de urbanismo tático, que aumenta a área de pedestres nas vias. Fatores como esses melhoraram o trânsito do Recife, tornando-o mais seguro, como demonstram os dados do Comitê Municipal de Acidentes de Trânsito (Compat), que revelam uma diminuição de 47% no número de vítimas fatais entre 2014 e 2019."

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“Foi ainda por iniciativa do conde João Maurício de Nassau que o Recife conheceu a primeira carroça, que viera anteceder a carruagem trazida de Lisboa pelo bispo Dom Diogo de Jesus Jardim em 1785”

Leonardo Dantas Dias em seu livro O Recife 1900 - A vida em três décadas.
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“As maxambombas, trifurcando-se a caminho de Dois Irmãos, do Arraial, da Várzea, com seus apitos e seus barulhos de vapor, batizaram o Largo do Entroncamento. Sumiram-se os trenzinhos suburbanos, demoliram a velha estação

Mário Sette em seu livro “Arruar - História Pitoresca do Recife Antigo”.

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