Legado de Francisco vai além da fé
Morto logo depois da Páscoa, o Papa que se inspirou na figura de São Francisco resgatou a simplicidade e a transparência como valores humanos

A aparição no domingo sagrado para a comunidade católica revelou-se como despedida. O primeiro papa latino-americano cumpriu seu destino. O argentino Jorge Mario Bergoglio assumiu o posto máximo do Vaticano ainda com o antecessor em vida, quando Bento XVI renunciou para cuidar da saúde, há quase 12 anos. Em mais de uma década de pontificado, o Papa Francisco – nome adotado em homenagem ao santo que cultivava a simplicidade – cativou fiéis e admiradores não crentes em todo o mundo. Pelo bom humor, pela expressividade, pela honestidade. Seu caminho era o da dedicação missionária exercida com esperança, palavra que escolheu na definição de sua autobiografia, lançada este ano no Brasil pela Fontanar.
Os ensinamentos acumulados estão registrados em múltiplas declarações marcadas pela sinceridade, humildade e, sempre que possível, uma confiante alegria de estar presente, mesmo numa época de tantos dissabores e aflições. Sem se furtar à veemência necessária, quando por exemplo apelava aos líderes do planeta para que a matança e o sofrimento das guerras terminassem. Bergoglio também demonstrava inabalável fé no futuro, assim descrita no otimismo professado: “A esperança é acima de tudo a virtude do movimento e o motor da mudança: é a tensão que une memória e utopia para construir os sonhos que nos esperam”. Abandonar os sonhos não é uma alternativa, pois “se um sonho esmorece é preciso voltar a sonhá-lo de novas formas”, escreve na introdução do livro autobiográfico.
Consciente da responsabilidade que carregava, o Papa Francisco liderou uma das mais difíceis autocríticas da Igreja Católica, ao combater a pedofilia e seus rastros de abuso na história. Além de condenar sistematicamente os conflitos bélicos, denunciava a nocividade do comércio de armas, e não se cansava de alertar sobre os riscos da destruição ambiental do planeta, exortando uma ecologia integral. Defensor dos direitos humanos para todos, sem exclusão, abençoou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, pregava o acolhimento dos migrantes e a comunhão entre as religiões, como mostrou em visita ao Iraque, abraçando representantes do islamismo. Gostava de semear consensos, inclusive politicamente, avesso a intolerâncias e distanciamentos de qualquer ordem. Queria – e traduzia essa vontade em atos – um mundo melhor, mais unido e mais justo.
De Cuba à União Europeia, entre ucranianos e russos, os chefes de governo de todos os países lamentaram a morte de Francisco. Que o respeito ao seu legado permaneça, dentro e fora da Igreja Católica, para que sua ampla e generosa compreensão da realidade não cesse de se disseminar. Sobretudo para as novas gerações, que já chegaram neste século tensionado, em um planeta exaurido e ameaçado pela humanidade. Que a simplicidade inspiradora de Jorge Mario Bergoglio seja cultivada, independente da fé ou sua ausência, para a construção de um futuro concebido sobre os alicerces da dignidade, da fraternidade e da verdade.