Falseamento e manipulação
Em sintonia com os temas da contemporaneidade, o Papa Francisco mostra preocupação com o controle das informações pelas empresas de tecnologia

A percepção da realidade é mediada pelos sentidos: visão, tato, olfato e audição se integram para enviar ao cérebro sinais de veracidade e reconhecimento do que vem de fora. No mecanismo perceptivo humano, a consciência do que há no mundo real já dependeu mais diretamente do olhar, do toque das mãos, do odor e da escuta. Com o advento da tecnologia da informação em rede, cada vez mais os sentidos do corpo vão deixando passar pela fronteira do entendimento o dado virtual como real, sem a preocupação de checagem.
Aproveitando a passagem aberta, surgem os produtores de fatos, as fake news e os memes que entretêm e atraem a atenção de milhões de pessoas ao mesmo tempo, forjando caricaturas, exageros, mentiras e invencionices de toda espécie. O que se vê e se ouve nas telas onipresentes da vida digital, não raro, sai de uma linha de montagem do falseamento, ou de várias delas, sobretudo em épocas de campanha eleitoral, quando a assimilação de um engodo como fato dado é capaz de mudar a direção da escolha do voto pela população. Mas o tamanho da rede mentirosa é tão vasto e diverso, que grande parte da política, hoje em dia, é praticada virtualmente: importa mais o corte do que o todo, a versão bem editada do que o fato cru e sem graça para os dedos nervosos passando telas.
É nesse contexto do espírito da época que o quase monopólio da tecnologia da comunicação ganha importância, especialmente quando os senhores do mundo digital posam ao lado de um líder conhecido por sua aversão à diversidade e à democracia, na sua posse. Donald Trump conseguiu levar para junto de si o poder dos principais magnatas da informação. O grupo chamou a atenção do planeta, na cerimônia de posse no Capitólio, no início da semana. E suscitou o alerta do Papa Francisco, sempre antenado com a contemporaneidade, para quem o momento atual exige cuidado com a desinformação e a polarização. O pontífice acerta no alvo: a desinformação e a polarização andam juntas, em retroalimentação.
Disse o líder máximo da Igreja Católica, que muitos fiéis deveriam ouvir mais: “Muitas vezes a realidade é simplificada para provocar reações instintivas. Palavras são usadas como um punhal. Até mesmo informações falsas ou habilmente distorcidas são usadas para enviar mensagens destinadas a incitar ânimos, provocar, ferir”. Nessa linha, os algoritmos que direcionam a compreensão e o consumo, programados pela lógica do mercado, podem facilmente distorcer a percepção da realidade. O que o Papa não disse, mas podemos acrescentar, é que os dois lados da moeda exprimem o mesmo cenário sinistro: de um lado, o poder político incitador da intolerância e da violência; de outro, o poder econômico em busca de iscas de consumo, que também se valem das ferramentas do falseamento para alcançar mais consumidores.
Nas duas faces, a silhueta da manipulação aparece como um mau presságio do que pode estar por vir.