Transparência e privacidade
Trajetória de Assange traz de volta e atualiza o debate sobre liberdade de expressão e responsabilidade com a informação difundida

O curso recente da história da comunicação faz com que o idealismo de Julian Assange pela transparência das informações em poder do Estado, contra o segredo defendido por governos também democráticos, e não apenas os totalitários, esse idealismo não perdeu sentido, mas a realidade mudou. A transparência pública é agora um dos fatores importantes, dentre outros, para o ideal da comunicação responsável. Num contexto em que a palavra mais usada é narrativa, no confronto político, econômico e, às vezes, no bate-boca virtual com verniz ideológico aplicado pelo oportunismo com data de validade. Se a democracia atravessa crises nacionais de alcance global, muito se deve à desorientação das informações que podem, no fundo, desinformar, propositadamente.
Em sua coluna no UOL, a professora Fernanda Magnotta abordou o caso Assange pela ótica da reconfiguração do debate sobre privacidade na era digital. Na mudança que experimentamos na forma como nos relacionamos com os outros e com o mundo, também foram alteradas as relações de poder, assim como, por seu potencial de chegar a mais gente, o poder da informação mudou. Se há duas décadas o vazamento de dados da esfera governamental, que motivou o WikiLeaks, chamava a atenção para a esfera pública e seu domínio sobre a população, em poucos anos a esfera privada ganhou força, com a ascensão das gigantes da tecnologia da informação e sua quase onisciência sobre tudo e todos no planeta. “Eles operam por meio de suas capacidades de coleta e análise de dados em larga escala, impactam não apenas práticas de consumo, mas também opiniões e comportamentos políticos, criando uma dimensão de vigilância que transcende fronteiras nacionais. Esse novo contexto desafia antigas noções de soberania e do que é público, colocando em xeque a capacidade dos Estados de proteger os dados de seus cidadãos contra a exploração comercial e a manipulação”, alerta Magnotta.
Vale acrescentar a essa nova tensão entre a segurança e a liberdade pessoal, ou entre a livre informação e a privacidade, o movimento nocivo, sistemático e mal-intencionado das mentiras propagadas pelas redes sociais. As fake news, não por acaso, desde que apareceram com evidência, ameaçam o sistema democrático, influenciando a escolha de eleitores, elevando ou destruindo imagens de lideranças políticas, ou mesmo determinando comportamentos coletivos, como se viu durante a pandemia. Num território dos mais nobres para a manutenção da democracia – a liberdade de expressão – a transformação da virtude em vício pode conduzir a um impasse que prejudica a análise e a definição de soluções que impeçam o mau uso da informação: ao invés de transparente, opaca e distorcida, ao invés de verdadeira, sutil ou escancaradamente mentirosa.
A bandeira da democratização da informação não é mais simplesmente a da denúncia do controle do Estado sobre os direitos dos cidadãos. As corporações tecnológicas e os indivíduos que espalham minas explosivas ou obstáculos à liberdade, usufruindo dela, impõem à comunidade global – ainda separada em nações – uma missão que se estenderá por gerações: encontrar meios para proteger a democracia contra os abusos de sua própria essência.