Pequena nota sobre "Educação Popular"
Li pela primeira vez a Pedagogia do Oprimido por volta de meus 22 anos. Foi, parafraseando Bandeira, 'meu primeiro alumbramento' pedagógico!

Não sei se compreendi bem algumas de suas noções, mas a passagem sobre a "educação bancária" deixou-me uma impressão tal que comecei a enxergar "bancarismo" em praticamente todas as relações que envolviam autoridade ou hierarquia e supunha, na minha ingenuidade, que dialogicidade bem que poderia ser uma norma universal de conduta, um critério ontológico e transcendental! Não tinha a menor desconfiança, claro, àquela altura de minha vida, de que o futuro do paulofreireanismo seria esta ampla institucionalização de seu pensamento e memória, que culminou no Patronato (2012) e no Marco de Referência da Educação Popular (2014). Naqueles anos (o que alongava ainda mais minha beata ingenuidade), eu estava certo de que alguém que tivesse lido Freire ou Marx não teria outra saída a não ser tornar-se freireano ou marxista. Ou então permanecer em sua "desumanidade" e alienação.
Passados todos esses anos que me separam daquela primeira leitura, percebo que o que a Educação Popular propôs, há 60 anos, era algo mais profundo e mais extenso: constituir um "povo"! Nesta constituição, Romantismo e Iluminismo se juntaram, não para definir projetos de "conscientização", mas, a partir da nomeação da precariedade da consciência do outro, sugerir a CONVERSÃO PEDAGÓGICA DESTA MESMA CONSCIÊNCIA, o que fazia da chamada Educação Popular um amplo programa, digamos, "ortopédico", como já assinalei aqui mesmo.
Penso que chegou o momento de ir além das respostas pedagógicas que nos foram anunciadas pelos intelectuais dos anos 50/60, para que possamos pensar melhor a dimensão da crise educativa em que nos metemos, sob pena de a Educação Popular se tornar uma antiga promessa pedagógica datada e embriagada de sensibilidade libertária: um encantador anacronismo numa época unidimensional de esvaziamento utópico e gerencialismo tecnocrático para a qual aquela modalidade de educação não passaria de um contraponto frágil e inofensivo.
Aliás, no seu famoso ensaio "O Mito de Sísifo" (1951), Albert Camus fala do "absurdo" que, metaforicamente, aquela tarefa infinita e cruel à qual Sísifo fora condenado, representava: o próprio absurdo de toda existência, uma existência em que aquilo que chamamos de "realidade" nunca se submete inteiramente às "teorias" que pretendem descrevê-la, explicá-la ou controlá-la. É essa rebeldia do real que constitui o absurdo que torna o Mundo incompreensível, hostil, indomável! O problema - e isso diz respeito também à chamada Educação Popular- é quando, na falta de conceitos, ideias e categorias adequadas pra "dar conta" do real, somos obrigados a reutilizar velhas ideias para tentar compreender eventos novos, e de alguma forma queremos, "à fina força" (como se dizia antigamente!), que o NOVO caiba no VELHO. É ai, exatamente aí, que os conhecidos CLICHÊS, que rotineiramente usamos em nossos discursos pedagógicos, exercem sua tranquilizadora função: proporcionar um conforto uterino, bem quentinho, aconchegante e protetor para o vazio que a REALIDADE cava entre si mesma e os CONCEITOS que tentam explica-la!
Flávio Brayner , professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE.