Um estranho mercado
Confesso que tomei um susto quando, há algumas semanas, meus alunos da Universidade Rural me falaram de "Bebê Reborn"..............

Há uma famosa frase de Michel Foucault, ao final de seu livro "As palavras e as coisas", que se transformou num verdadeiro clichê do anti-humanismo: "O homem nem sempre foi a maior preocupação do homem: ele é uma invenção recente, datando de dois séculos e meio, e assim como ele surgiu, ele desaparecerá, como um desenho na areia da praia que uma onda vem e apaga". Ele queria dizer com isso que as chamadas Humanidades, os estudos da linguagem, do trabalho e da vida são recentes e são elas que criam uma determinada concepção de "homem" e de "humanidade" (como racionalidade, eticidade, liberdade, consciência, sociabilidade...) que, num vaticínio realista, está chegando ao fim.
Confesso que tomei um susto quando, há algumas semanas, meus alunos da Universidade Rural me falaram de "Bebê Reborn", expressão que não compreendi no momento e não sabia o que ela designava! Mostraram-me uma foto e quase não acreditei tratar-se de um... boneco, com prefeitas feições humanas. Tive dificuldade em acreditar que tivéssemos chegado àquele ponto, em que adultos andam por aí exibindo criaturas de plástico sobre quem fazem investimentos emocionais aparentemente verdadeiros! Ao custo de até 15 mil reais!
Não se trata da noção de "simulacro" (Baudrillard), não é uma "imitação": eles são o "bebê" no interior do circuito emocional e simbólico e, aqui, o interessante é observar como o capitalismo é capaz de capturar o afeto, vendendo experiência emocional, afeto controlável, sem resposta humana e perfeitamente higiênico.
Penso que estamos vivendo o início de uma época que não trará mais nada da anterior, e ficará claro que, aquilo que chamamos de "pós-modernidade", não era algo que vinha "depois", ou uma suspeição em relação a certas metanarrativas, como queria Lyotard, o daquele final humano finalmente reconciliado. Aqui, me parece que é o homem, finalmente, que se tornou o objeto de ódio do próprio homem, esse homem estrangeiro e imigrante, invasor, pregando culturas identitárias, clamando por justiça histórica, reivindicando novos gêneros e fazendo emergir - no interior da ordem democrática- exigências que abalam a antiga ordem das coisas, colocando a INCERTEZA no espaço entre todas as nossas crenças e relações: o real tornou-se insuportável, assim como os homens reais...
Nós supúnhamos que a tarefa da Filosofia era essa incansável busca da VERDADE (encontrá-la poderia ser muito perigoso e detê-la ainda mais!) e, desde Platão, que tentamos escapar das aparências, da ideologia, das falsas consciências, das consciências ingênuas, das ilusões. Mas parece que, agora, chegamos à conclusão de que não confiamos no passado, não acreditamos no futuro, e vivemos o VAZIO de um presente contínuo e a ser rapidamente consumido. Precisamos de um tempo que não passe, um boneco sem tempo. Precisamos da ilusão. Precisamos do tirano!
Ora, a democracia foi essa forma de construção política do mundo comum que exigia o encontro com esses "outros" insuportáveis, com suas oposições, críticas, contestações, reivindicações, culturas particulares..., todos exigindo visibilidade e expressão. O encontro com o OUTRO, sua simples presença externa ou interiorizada, tornou-se problemática: que os imigrantes americanos estejam sendo expulsos, novas leis promulgadas para impedir a chegada de estrangeiros, o massacre dos palestinos apoiado pelo silêncio cúmplice e genocida do ocidente democrático, o ataque ao pensamento, sob a forma da perseguição às Universidades e, sobretudo, dos estrangeiros nas Universidades (caso recente de Harvard, mas também na Hungria de Órban e na Turquia de Erdogan)... são fenômenos coetâneos de ódio contra o OUTRO, esse outro real cuja simples presença é entendida como ameaça social, política, cultural, identitária. Todo fascismo, diz Jason Stanley, precisa criar a linha divisória entre o "NÓS" e o "ELES", e para isso precisa adulterar a realidade, não apenas através da mentira ou da falsidade, mas também através da substituição do real, onde preferimos a companhia virtual do Wathsapp, o poema escrito pelo Chat GPT, o diagnóstico médico ou a sentença judicial fornecida pela Inteligência Artificial.
Acho que nunca tivemos tanta consciência, não do real, mas da sua insuportabilidade e vamos viver uma espécie de "princípio do prazer" como simulação, como projeção externa, como transferência, e não como expressão do desejo. O VAZIO é simbolicamente preenchido e está criado um estranho mercado: O MERCADO DA DOR.
PS. Disseram-me que eu posso encomendar um bebê Reborn a partir de uma fotografia minha, quando ainda era bebê. Imaginem minha alegria de portar a mim mesmo nos braços e saber que esse outro "Eu" nunca crescerá, nunca morrerá, nem conhecerá um papai Reborn. Estou salvo!
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e visitante da UFRPE