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Elogio da sala de aula

A maior dor que um professor pode sofrer é aquela de ver um de seus alunos partir antes dele...É contrário à "ordem natural das coisas" ....

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 20/05/2025 às 0:00 | Atualizado em 20/05/2025 às 10:48

É bastante conhecida aquela passagem do educador Rubem Alves sobre a sala de aula: se um E.T. caísse na Terra no século XVI em plena sala de aula, e voltasse à Terra no século XX, não veria nenhuma diferença: um lugar que teria mudado muito pouco na sua estrutura física, arquitetônica e humana e em cinco séculos!

A sala de aula, dizem, é um lugar chato, todos olhando para frente, aulas sem relação com a vida, conteúdos sem interesse prático, disciplina, atenção, hierarquia, respeito, avaliações, controle, vigilância, punição, "bancarismo" pedagógico... para, no fim, esquecer tudo isso e cuidar da vida profissional, especializada, que o mercado de trabalho exige de cada um de seus egressos.

Eu confesso que adoro uma sala de aula. Sim, tive professores enfadonhos, desinteressantes, grosseiros, mas foi porque os tive, com a diversidade de coisas "úteis" e "inúteis" que eles me apresentaram, que eu pude escolher o que queria: eles me mostraram a diversidade do mundo, com seus desencantos, inutilidades e desacertos, mas também um mundo de saberes, métodos, sensibilidades, e me ofereceram critérios para que eu escolhesse o queria para mim, ao que daria "prosseguimento". Foi assim que eu soube o que era INTERESSANTE e o que não era (a palavra "interessante" vem do Latim INTER ESSE, que significa o que "está entre nós").

Eu iria mais longe no elogio - talvez fúnebre !- da sala de aula, e lembraria uma passagem de Maquiavel nas "Décadas de Tito Lívio" (Maquiavel não escreveu apenas "O Príncipe"). Ele diz que, quando foi expulso da Secretaria de Florença, e depois de sair da prisão (onde fora, inclusive, torturado!), ele passava os dias bebendo nas tavernas e, à noite, ao voltar para casa, colocava seu roupão, lavava os pés e entrava na sua biblioteca para "gozar da companhia dos mortos"! E cada livro retirado da estante, era um autor, um amigo que ele retirava de seu sono secular para conversar!

Na sala de aula, nós fazemos algo parecido: nós "ressuscitamos"! Imagine, por um momento, esse poder simbólico de que dispõe o professor de "RESSUSCITAR" homens e mulheres que, por terem dito, escrito, pensado e agido num mundo anterior ao nosso, deixaram suas vidas ou pensamentos registrados em livros para que nós, os pósteros, não caminhássemos cegamente. E, ao mesmo tempo, eles atribuíram ao professor a função de "Mensageiro" e responsável por uma herança, para que nós - professores- não os deixassem condenados ao esquecimento: uma sala de aula é um lugar de "ressurreição", ali onde nossos mortos (e os mortos dos outros, das outras culturas) retornam através da PALAVRA de um professor, iluminando, explicando, interpretando uma época, um sentimento, um fenômeno, um fato, e pedindo-nos que façamos o mesmo com nossa época.

Os alunos (do Latim "alere" ou "elere", elevar ou fazer crescer) talvez não saibam disso e sintam o tédio de receberem uma herança que não pediram, que não desejaram, diante de um mundo que acena para eles com coisas maravilhosas, fáceis, rápidas, múltiplas, superficiais e mastigadas... Talvez mais tarde, bem mais tarde, quando a "coruja de Minerva alçar voo", quer dizer, quando a consciência do que passou chegar, eles percebam que, mais do que simples alunos, eles foram testemunhas de uma "ressurreição"!

Maquiavel certamente recolocava seus livros, no final da noite, em sua estante original, devolvendo-os ao "sono secular" de onde os retirara. Um professor, ao terminar sua aula, seu curso, seu seminário, espera que seus alunos levem aqueles "autores" consigo, como um amigo a se fazer acompanhar - ou a evitar. E assegurem com isso que, mais do que testemunhas de uma ressurreição, eles se tornem responsáveis por um legado, uma herança sem bula, sem testamento, sem modo de uso...

* * *

Penso que a maior dor que um professor pode sofrer é aquela de ver um de seus alunos partir antes dele: acho isso não apenas insuportável, como contrário à "ordem natural das coisas" de que falava Santo Anselmo. Nossa aluna do Doutorado, Amanda Ferreira, nos deixou na sexta feira, 16, e a sala de aula que eu suponho ser um lugar de "ressurreição" não a trará de volta. Mas espero que, pelo menos, na memória dos que a conheceram, se possa, de vez em quando, retirá-la da "biblioteca" de nossa lembrança afetiva, onde dormem nossos mortos, para conversar um pouco com ela.

Para Amanda Ferreira (In Memoriam)

Flávio Brayner , professor (e adora uma sala de aula!).

 

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