OPINIÃO | Notícia

Priscila Lapa e Sandro Prado: O escárnio da CPI das "bets" e a certeza da impunidade

Com o avanço da internet e o crescimento global das plataformas de jogos, o Brasil foi sendo incorporado ao circuito internacional das "bets"

Por PRISCILA LAPA E SANDRO PRADO Publicado em 18/05/2025 às 13:25 | Atualizado em 18/05/2025 às 16:39

Em 30 de abril de 1946, por meio do Decreto-Lei nº 9.215, o então presidente Eurico Gaspar Dutra proibiu o funcionamento dos cassinos no Brasil, sob influência de setores conservadores. A medida encerrava uma era de glamour e emprego em torno do jogo, mas inaugurava, na prática, um ciclo de hipocrisia legal: o jogo foi banido do ordenamento jurídico, mas nunca desapareceu da vida nacional, e práticas como o jogo do bicho proliferaram à margem da legalidade, muitas vezes sob a complacência das autoridades.

Com o avanço da internet e o crescimento global das plataformas de jogos on-line, o Brasil foi, aos poucos, sendo incorporado ao circuito internacional das chamadas "bets". Essas casas de apostas esportivas passaram a operar sob registros em paraísos fiscais e, por muito tempo, à margem da regulação estatal, faturando bilhões e se beneficiando da omissão legislativa. Estima-se que o mercado brasileiro de apostas on-line movimentou mais de R$ 240 bilhões em 2024, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), com participação de grandes clubes de futebol, influenciadores digitais e conglomerados internacionais.

A legalização veio em 2018, no apagar das luzes do governo Michel Temer, sem muito alarde, e a lei previa que o governo teria dois anos para regulamentar, prorrogáveis por mais dois, o que não aconteceu na gestão de seu sucessor, Jair Bolsonaro. A Lei nº 14.790, sancionada em dezembro de 2023, já no governo Lula, tentou organizar esse setor ao criar regras para a exploração comercial das "bets". A norma prevê tributação, contrapartidas sociais e publicidade responsável. No entanto, a regulação chegou tarde e ainda carece de instrumentos eficazes de fiscalização, especialmente no que se refere à lavagem de dinheiro, à proteção do consumidor e à prevenção da ludopatia — o vício em jogos.

Foi nesse contexto que o Senado Federal instalou, em 12 de novembro de 2024, a Comissão Parlamentar de Inquérito — "CPI das Bets", com o objetivo de investigar a atuação das casas de apostas e sua influência sobre os consumidores, sobretudo os mais jovens. O foco principal recaiu sobre a promoção dessas plataformas por celebridades, influenciadores digitais e atletas, alguns dos quais com contratos milionários para impulsionar o consumo de apostas entre seus seguidores.

A CPI, contudo, rapidamente transformou-se em um palco de constrangimento institucional. Os depoimentos colhidos até aqui revelaram mais do que uma suposta má-fé dos influenciadores: evidenciaram o escárnio com que parcelas da elite digital brasileira tratam as instituições democráticas. A transmissão da sessão que ouviu a influenciadora Virginia Fonseca bateu recordes de audiência — e não foi pelo conteúdo técnico. Durante seu depoimento, ela se recusou a informar os valores que recebeu das casas de apostas. Já Rico Melquíades, outro convocado, chegou ao cúmulo de acessar uma plataforma de apostas, ao vivo, enquanto era inquirido pelos senadores.

O comportamento dos depoentes, marcado por desprezo, ironia e absoluto desinteresse em contribuir com os trabalhos da comissão, mostra que a CPI se transformou em espetáculo de autopromoção para alguns dos convocados. Há quem defenda que esses influenciadores apenas agiram dentro de seus direitos constitucionais — o que é parcialmente verdade. Mas há também um limite ético e institucional que foi ignorado: o respeito ao Parlamento e ao papel fiscalizador da Casa.

A certeza da impunidade permeou cada fala. O uso de habeas corpus preventivo, a recusa sistemática em colaborar e a ausência de qualquer sanção real aos convocados indicam que, para esse grupo, o Senado é apenas mais um palco a ser usado e monetizado. Transformar uma audiência pública em live ou meme não é apenas desrespeito; é um sintoma grave do enfraquecimento da autoridade das instituições republicanas frente à cultura da celebridade e à monetização da audiência.

Enquanto isso, um dos temas mais delicados permanece praticamente ignorado nos grandes debates da CPI: a ludopatia, um transtorno psiquiátrico reconhecido pela OMS, que afeta milhões de pessoas no mundo. A facilidade de acesso aos jogos on-line, a ausência de barreiras etárias eficazes e a associação de apostas ao "sucesso fácil" criam um ambiente perfeito para o vício em apostas. Dados do Instituto DataSenado revelaram que 58% dos usuários de "bets" possuem dívidas em atraso superiores a 90 dias. Trata-se de um público vulnerável, empurrado ao endividamento crônico por uma indústria que lucra com a ilusão do ganho fácil.

A nova lei prevê campanhas educativas e restrições à publicidade, além de mecanismos de controle etário. Na prática, nada disso está em vigor. Enquanto isso, nomes como Neymar Jr., Ronaldo Fenômeno, Michel Teló, Virginia Fonseca, Deolane Bezerra e Galvão Bueno seguem promovendo apostas para públicos de todas as idades. Influenciam não apenas o consumo, mas a normalização cultural da lógica da sorte como projeto de vida. Todos os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro de 2025 são patrocinados pelas "bets"; apenas duas equipes não têm as "bets" na posição de patrocinador master, em destaque no centro do uniforme.

A CPI, com encerramento previsto para junho de 2025, tende a produzir um relatório final com sugestões genéricas. Nada que ameace o modelo de negócios das "bets", tampouco os contratos que as ligam a clubes, empresas de publicidade e celebridades. A engrenagem funciona bem demais para ser desmontada por uma comissão parlamentar que já nasceu sob suspeita de espetáculo.

Se havia alguma esperança de que a "CPI das Bets" trouxesse luz sobre um mercado bilionário, que funciona sem transparência, ela foi ofuscada pela cortina de fumaça do entretenimento e do cinismo. O escárnio visto nas audiências públicas não é apenas um gesto de desprezo à autoridade do Senado. O que resta é o retrato de um país que já não distingue o espaço cívico do entretenimento, a inquirição da autopromoção, o plenário da "live". A certeza da impunidade, essa sim, permanece firme — e democrática. Atinge todos, do jogador endividado ao influenciador milionário.

Enquanto isso, milhões de brasileiros continuam sendo seduzidos pela promessa da sorte rápida, afundando em dívidas e adoecendo em silêncio. As instituições devem uma resposta à sociedade — e não podem mais falhar.

Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política; Sandro Prado, economista e professor da FCAP-UPE

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