OPINIÃO | Notícia

Ingrid Zanella e Fabiana Augusta: Somos todos advogados

Quem fala em nome do Estado empunha a mesma lâmina simbólica que o colega da esfera privada: a palavra, submetida à técnica e temperada pela ética

Por Ingrid Zanella e Fabiana Augusta Publicado em 18/05/2025 às 12:50 | Atualizado em 18/05/2025 às 16:42

"Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços… cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,depois morreremos de medo". Poeta que é, sensível ao sentimento do mundo, dos humanos e daquilo que os habita — o inconsciente —Drummond descreveu com acurácia a sensação que hoje atormenta cada advogado brasileiro: o medo que esteriliza. Medo de testemunhar a fragilização de uma das instituições mais sólidas da República brasileira; medo de, ao cindir nosso corpo único da advocacia, abrir rachaduras por onde se infiltra o arbítrio.

Quem fala em nome do Estado empunha a mesma lâmina simbólica que o colega da esfera privada: a palavra, submetida à técnica e temperada pela ética. Dispensá-la do crivo da OAB é instalar exceção onde deve vigorar a regra, é lançar navios sem farol num mar de pressões políticas. A história, sempre generosa em alertas, ensina que democracias raramente tombam por ataque frontal; muitas se esfarelam por erosão lenta, nas fendas abertas pelo descuido institucional.

É nesse ponto nevrálgico que se encontra o Recurso Extraordinário 609 517/RO (Tema 936), em julgamento no Supremo Tribunal Federal. Discute-se se procuradores federais, estaduais e municipais podem atuar sem inscrição na OAB. Não se trata de formalismo. A Constituição de 1988 erigiu a advocacia pública ao status de função essencial à Justiça (arts. 131 e 132), mas não detalhou suas garantias — o que fez, com esmero, para magistratura (art. 93) e Ministério Público (arts. 127-130-A). Coube ao Estatuto da Advocacia (Lei 8 906/1994) completar esse mosaico, assegurando prerrogativas, sigilo e independência técnico-jurídica.

Retirar o advogado público desse concerto é entregá-lo a um poder sem contrapeso. Sem a OAB perde-se, por exemplo, a gênese ética comum que o blinda contra pressões governamentais efêmeras; a tutela das prerrogativas — como a irrenunciabilidade dos honorários de sucumbência (art. 23 da Lei 8 906/94); o acesso ao quinto constitucional que oxigena tribunais; a jurisdição disciplinar uniforme que a ADI 2 652 já protegeu. Hely Lopes Meireles, procurador municipal e Professor de todos nós lembrava: "Segurança jurídica é … uma das vigas-mestras da ordem jurídica." Subtrair o advogado público da Ordem é serrar essa viga exatamente onde ela sustenta o edifício republicano.

Não por acaso, a Nota Conjunta das entidades nacionais da advocacia pública proclama a inscrição como "requisito indispensável" - nenhum estatuto setorial cobre, com igual densidade, as zonas do sigilo, da independência e da responsabilidade profissional. Invoca-se a autonomia da carreira. Mas que autonomia resiste sem ancoragem? O registro na Ordem insere o advogado público no mesmo círculo de deveres do colega privado e o resguarda de ingerências políticas.

Não por acaso, o art. 133 da Constituição afirma que "o advogado é indispensável à administração da justiça" — sem distinguir quem vive de honorários ou soldos estatais. Duas categorias, um só ofício, uma única tábua de deveres. Na tribuna do Supremo, o advogado da União Lyvan Bispo dos Santos recordou o RE 663 696: as Funções Essenciais formam sistema único de defesa da Constituição. Ao seu lado, pela OAB, o procurador Vicente Braga advertiu: "Desunião enfraquece". E lançou a pergunta que ecoa pelos mais de 5 500 municípios brasileiros: quem protegerá suas procuradorias se a porta da Ordem se fechar?

O presidente da OAB, Beto Simonetti, alerta que abolir o registro romperá "o princípio de unidade da advocacia". Perguntemos então, sem rodeios: a quem interessa nos desunir? A quem interessa nos fragilizar? Não ao cidadão, que precisa de um Estado capaz de dizer "não" ao governante e "sim" à Constituição. Fortalecer a advocacia pública é fortalecer a República. É firmar, na pedra do Estado Democrático de Direito, uma instituição que sustente políticas públicas legítimas, imunes a governos de turno.

Sem esse elo, proliferam as fissuras onde germina o medo drummondiano. Se a desunião já "esteriliza os abraços", que dizer de sermos desalojados da casa comum que nos ampara? Somos todos advogados! A OAB nos une — e a democracia agradece. Sem esse cimento, proliferam as fissuras onde germina o medo drummondiano. Se a desunião "esteriliza os abraços", o que acontecerá se formos desalojados da casa comum que nos ampara?

Somos todos advogados! A OAB nos une — e a democracia agradece.

Ingrid Zanella, presidente da OAB-PE, e Fabiana Augusta, diretora de apoio à Advocacia Pública

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