Flávio Brayner: jovens!
Supor que em algum momento de minha vida eu preencherei as lacunas da alma e poderei partilhar a vida com outra pessoa, é um aberração.

Eram quatro ou cinco garotas sentadas na mesa ao lado, idades entre 20 e 25 anos, quando ouvi de uma delas mais ou menos o seguinte:
"Tá cada vez mais difícil achar um cara interessante. De qualquer forma, de que adianta dividir a vida com outra pessoa se eu ainda não preenchi minhas lacunas. Quando eu as tiver preenchido posso, então, partilhar minha vida com outra pessoa. Lá pelos 28 anos!".
As pessoas daquela roda concordaram e só faltaram elevar a frase ao nível da "genialidade". Não atentei naquele momento para a gravidade do enunciado, que não me saiu da cabeça.
A infantilização eterna
Até o século XVI não existia infância tal como a conhecemos, como campo afetivo alvo de atenções e cuidados especiais.
Essa "infância" está praticamente terminada e nossos jovens, muito antes de adquirirem independência (sobretudo financeira) já querem dispor da mais completa autonomia:
O direito (!) de não se submeterem a nenhuma regra vinda dos outros, num questionamento radical de toda autoridade. Resultado: ao invés de termos apenas jovens precocemente adultizados, temos adultos eternamente infantilizados!
"Jovem" foi, até os anos 60, um conceito etário. Depois de 68 virou sociológico: uma disposição para a resistência, para o novo, para a revolução dos costumes, seguido de um abstrato direito de nada proibir, anunciando um tipo de liberdade egóica, de uma moral altamente hedonista.
Supor que em algum momento de minha vida eu preencherei as lacunas da alma e poderei partilhar a vida com outra pessoa, é uma verdadeira aberração.
Seria supor (lembro Sartre) que o ser-em-si vai coincidir com o ser-para-si, que a consciência (um "instrumento" de averiguação da realidade e de auto-reflexão) e o conteúdo dessa consciência vão se emparelhar - só um Deus "hegeliano" seria capaz disso: a perfeita harmonia entre sujeito e predicado.
Seria supor, ainda, que a alma é uma espécie de recipiente onde adiciono "experiências" e que eu tenho perfeita visão do tamanho dele e sei quando ele estará "cheio", a partir do que posso "trocar" conteúdos d'alma com outra pessoa. Os animais estão prontos (fisiologicamente) em pouco tempo e nunca mais serão outra coisa além daquilo, mas nós homens não: estamos condenados à precariedade, ao inacabamento: somos vir-a-ser (projeto).
ste é o preço da liberdade, quer dizer, de poder romper com nossas condições de origem e trilhar um caminho deliberado, sem nunca saber aonde vai dar. Sartre resumiu isto assim: "o homem é uma paixão inútil!"
A frase daquela garota é um reflexo do patológico narcisismo contemporâneo: aos 28 anos ela estará terminada, numa delirante autoconstrução subjetiva só possível para uma divindade incausada, aquele, muito conhecido, do "-Eu sou o que sou!".
A juventude é uma paixão inútil!
Flávio Brayner, professor emérito da UFPE e Visitante da UFRPE