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Uma noite aos retalhos

"E me morro aos poucos - sempre infeliz e repudiada - perante a inquietação das minhas compridas madrugadas"..............................

Por DAYSE DE VASCONCELOS MAYER Publicado em 04/05/2025 às 0:00 | Atualizado em 05/05/2025 às 11:09

Nada é estranho. Tudo é possibilidade. Por isso não me admira que o sono, algo essencial, tenha a capacidade de desaparecer em cada crepúsculo. Para os insones, a madrugada é sempre infinda. É o tempo em que as recordações pelejam ou guerreiam em nossa mente e a imaginação pode se revelar magia, arte e até desespero.

Existe uma balada alemã, referida na obra de Yourcenar (Golpe de Misericórdia), que assevera que os mortos se vão rápido, e os vivos igualmente. Mas não conheço ainda - se é que escreveram - a balada dos insones - aqueles que invejam os animais porque eles não perdem o sono pranteando seus desacertos. Álvaro de Campos conhecia essa tristeza quando escreveu "Não durmo. Jazo. Cadáver acordado. Sentindo. E o meu sentimento é um pensamento vazio... passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada. E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo". Consigo imaginar o sono como uma morte transitória. Por isso retorno à poesia de Campos: "quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo" ou de Jorge Luís Borges: "devemos entrar na morte como quem entra numa festa". Mas vejo a morte também de forma provisória. Dirão os que me leem que é um absurdo morrer temporariamente. Contesto. O absurdo também faz parte do itinerário humano. Para mim, estirar o corpo cansado numa cama pode ser uma festa ou uma condenação. Para os que dormem é uma folia, para os insones é genuína mortificação.

Essas ideias se cruzam com a tela de Van Gogh - "A noite estrelada" - produzida numa fase em que o pintor estava internado no Sanatório Saint-Remy-de-Provence, na França. A tela do artista parece ter sido produzida em noites acordadas: o redemoinho ou mar revolto ou encapelado levando à sensação de vertigem ou estonteamento; os ciprestes no formato de labaredas de fogo banhando e polindo a vasta escuridão.

O homem virtuoso deveria merecer o sono dos justos, expressão cunhada por Jean Racine: Il s'endormit du sommeil des justes". A expressão percorreu cinco séculos com o significado de morte tranquila ou descanso eterno para os bons. Tudo nos termos da Bíblia (Provérbio 4:17), "a insônia é destinada aos que "comeram o pão da maldade e beberam o vinho da violência". Mesmo sentindo a minha cama como uma madrasta descarinhosa, eu jamais estarei sozinha. Terei a companhia dos bons e dos maus. Reflito sobre os políticos sinistros, a infâmia dos burocratas de elite e o exagero de governos que convertem o povo em crianças esperançosas da descida do Papai Noel pela chaminé.

Mas a vigília, que nomeio de "malévola" ou "odienta", pode assumir o caráter pragmático. Nesse caso, ela seria, não fatalmente, inerente aos criadores, aos demiurgos, aos inventores de eras, épocas, personagens e figuras históricas. Este seria o preço da capacidade criadora, do talento e da inteligência.

Quando eu era muito jovem escrevi meu primeiro conto premiado - "Uma simples amendoeira". Mostrei meu trabalho, previamente, a um escritor já falecido. Ele também sofria de insônia e gostava. Afirmava que era o horário melhor para pensar sem a presença de curiosos, sem escutar ruídos e sem o tilintar do telefone. Contou-me que ficava bebericando um uísque com uma luminária focada no papel que escrevia. A inspiração chegava ligeira. Usei o artifício quando retornei do Rio de Janeiro. Esqueci que jamais havia bebido e dormi rapidamente em cima da pequena máquina Remington. Com o tempo, percebi que a criatividade é algo pessoal. Depende de cada sujeito e não de artifícios rocambolescos como diria Vargas Llosa no seu livro "O peixe na água". O escritor escrevia trancado em seu quarto durante o dia. A porta só era aberta para receber a bandeja com a refeição não frugal - grosso modo, um sanduiche. Mas não sei se o peruano usava as noites para escrever, levando em consideração a sua fama de grande amante apaixonado.

Em nenhuma das entrevistas que concedeu, Llosa foi indagado, ao que parece, acerca da insônia. As três relações conhecidas do escritor: Júlia Urquidi (a mulher dez anos mais velha e que inspirou a sua obra "Tia Júlia e o escrevinhador"), Patrícia Llosa (mãe dos seus três filhos) e Isabel Preysle, a socialite filipino-espanhola que havia sido casada com o cantor Julio Iglesias e ficara viúva de Miguel Boyer, ex-ministro da economia espanhol, nada divulgaram sobre a vigília do companheiro.

Mesmo a obra escrita em 2006 - "Cartas a um jovem romancista" - roteiro destinado aos moços vocacionados para a literatura - o peruano nada discute sobre o assunto. Restringe-se ao indispensável: o modo ou forma de inventar. Para ele, todos os enredos se alimentam da vida de seu criador, como se fosse um catóblepa - espécie de criatura fantástica, descrita por Jorge Luis Borges (Livro dos seres imaginários). Todavia, a "malévola" sempre esteve presente na vida de muitos homens e mulheres talentosos, entre eles, Frédéric Chopin, Marcel Proust (tema circular na obra "Em busca do tempo perdido), Franz Kafka, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís, Florbela Espanca, Rubem Braga, Graciliano Ramos (Tempos de Insônia), Ernest Heminguay, Victor Hugo, Stephan King (Insônia), Dostoievski, Jorge Luis Borges.

Por tudo que penso e registro, tenho a audácia de dizer agora: reconheço-a logo, aguardei-a todos os dias; achei-a em cada anoitecer. E me morro aos poucos - sempre infeliz e repudiada - perante a inquietação das minhas compridas madrugadas.

Dayse de Vasconcelos Mayer,  advogada e doutora em ciências jurídico-políticas

 

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