opinião | Notícia

Ingrid Zanella: Lacrar celulares da advocacia rasga garantias e fere democracia brasileira

Imposição não se sustenta jurídica nem moralmente. E torna-se ainda mais absurda e preocupante quando parte do Supremo Tribunal Federal

Por INGRID ZANELLA Publicado em 04/05/2025 às 19:13

É incompatível com o Estado Democrático de Direito exigir que advogadas e advogados tenham seus celulares lacrados como condição para participarem de atos judiciais. A imposição não se sustenta jurídica nem moralmente. E torna-se ainda mais absurda e preocupante quando parte do Supremo Tribunal Federal — corte que deve ser a guardiã última das liberdades constitucionais —, por decisão de um ministro que viveu o dia a dia da advocacia. É inadmissível que um advogado, agora investido na magistratura, autorize tamanha violação das prerrogativas profissionais, gesto que fragiliza a confiança de toda a classe na preservação das garantias democráticas.

Foi o ministro Cristiano Zanin quem, em decisão recente no âmbito da Primeira Turma do STF, determinou que advogados e advogadas — além de jornalistas — só poderiam acompanhar uma sessão de julgamento se aceitassem lacrar seus celulares. A medida, de uma arbitrariedade evidente, representou um constrangimento sem precedentes ao exercício profissional da advocacia, colocando sob suspeita aqueles que deveriam ter garantido o pleno direito de atuação. O espanto não se dá apenas pelo teor da decisão, mas pelo fato de ela vir de um ministro que conhece profundamente a realidade da advocacia, que a exerceu, que a defendeu e que construiu sua trajetória nela. Quem conhece a importância das prerrogativas não pode ser o agente de sua violação.

O que hoje se justifica sob a retórica da “excepcionalidade” pode amanhã se transformar em norma, abrindo espaço para o enfraquecimento sistemático das garantias fundamentais. Uma vez admitida a lacração de celulares de advogados e advogadas — sem ordem judicial específica, sem filtro, sem perícia —, abre-se uma porta para práticas de exceção contra defensoras e defensores de direitos humanos, advogados populares, representantes de movimentos sociais e profissionais que atuam em causas sensíveis. O que está em jogo, então, é a própria estabilidade do regime de liberdades que sustenta a democracia brasileira.

Diante da gravidade da situação, a OAB Nacional, comandada pelo presidente Beto Simonetti, reagiu com firmeza. De forma imediata e categórica, a Ordem dos Advogados do Brasil orientou todos os profissionais da a não aceitarem a lacração de seus aparelhos celulares como condição para participar de sessões ou audiências judiciais. Mais que isso: recomendou que qualquer tentativa de imposição dessa medida fosse prontamente comunicada à entidade. A resposta foi enfática: não aceitaremos intimidações travestidas de protocolo institucional. O que se tentou impor como regra de segurança, na prática, representou um constrangimento inconstitucional. E a OAB, enquanto guardiã das prerrogativas profissionais, não hesitará em atuar com energia diante de qualquer tentativa de fragilizar a atuação da advocacia.

Se a decisão for mantida, o caso será levado às Cortes Internacionais. Não estamos falando de uma medida simbólica ou de retórica inflamada, mas de uma ação jurídica concreta diante da violação de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Violar as prerrogativas da advocacia afasta perigosamente o nosso país do compromisso internacional com a democracia e os direitos fundamentais. A OAB está pronta para acionar todos os mecanismos disponíveis para evitar que essa inflexão se consolide — e não hesitará em fazê-lo.

A medida não fere apenas normas legais, mas os símbolos da democracia. E estes símbolos são tão estruturantes quanto as leis. Ao admitir a lacração de celulares de advogados e advogadas, o Estado projeta sobre a advocacia uma sombra de suspeição, transformando o defensor em potencial cúmplice, o exercício profissional em ameaça. É a criminalização indireta de uma profissão fundamental a cidadania. E quando o advogado e a advogada — a figura constitucionalmente incumbida de proteger direitos — passa a ser tratado como alguém sob vigilância, o que se instala não é a Justiça, mas o medo institucionalizado.

Numa sociedade democrática, a advocacia não pode ser o inimigo do processo. Quando é, não há cidadania protegida — há apenas um simulacro de legalidade, onde o arbítrio se disfarça de normalidade. Defender a advocacia é defender a liberdade. E toda vez que tentarem silenciar nossa profissão — seja por constrangimento, intimidação ou decisões que violam nossas prerrogativas — nossa resposta jamais será o silêncio. Será sempre a resistência. A advocacia não é cúmplice, não é espectadora e não é coadjuvante da democracia — ela é parte fundamental de sua engrenagem.

Quando a advocacia é impedida de atuar livremente, quem perde não é só a classe, é o cidadão, é o processo justo, é a civilidade republicana. Por isso, reafirmamos: a OAB não se calará. E não nos cansaremos de repetir — dentro e fora do país — que o Brasil só continuará sendo uma democracia se a advocacia puder continuar sendo livre.

Ingrid Zanella, presidente da OAB-PE

Compartilhe