Um luto simbólico
Houve uma época em que eu mesmo, como adulto e educador, fazia isso: fazia meus alunos entender que não bastava minha experiência no Mundo...

Tive, recentemente, a alegria de receber um valioso presente de minha ex-orientanda e professora, Adalgiza Leão, um livro de Sloterdijk sobre sua relação com a França (e com a cultura francesa. Sloterdijk é alemão, foi professor da Universidade de Karlsruhe). O presente me deu uma estranha sensação: há alguns anos era eu mesmo, como professor, que orientava ou aconselhava meus alunos a lerem tais ou tais livros! Hoje a relação se inverteu: são eles que me aconselham a ler autores que desconheço, livros que nunca li...
Fiquei tentando lembrar da minha relação com os livros desde a infância, e recordei de um barbeiro, ali no Mercado da Madalena, cujo nome era Seu Quitonéu (isso mesmo!) que me perguntou, na primeira vez em que fui cortar o cabelo ali, "se eu sabia ler"?. Disse que sim e ele abriu uma página do Velho Testamento - acho que a história de Sansão- e me pediu para ler em voz alta para todo o minúsculo salão, cheio de adultos, enquanto cortava meus cabelos! Não parei mais de ler e percebi que sem os livros eu simplesmente não seria o que sou (se é que sou algo que valha a pena "ser"!): tenho mais ou menos seis mil livros em minha biblioteca!
Nasci incompleto e precipitadamente, como todo mundo: sem pelo no corpo, sem dentes, sem saber falar, sem saber andar, com um fenda na cabeça... e tive que aprender e me adaptar a um mundo complexo e já estruturado, do qual não participei de sua construção. Os outros -professores, pais, adultos- tiveram que me ensiná-lo. Inclusive os "outros" que já não estão mais aqui, mas que descobri que podia consultá-los através dos... livros.
Houve uma época em que eu mesmo, como adulto e educador, fazia isso: fazia meus alunos entender que não bastava minha experiência no Mundo, não bastava minha palavra ou minhas ações; eu próprio era um herdeiro, mas um herdeiro sem testamento: nenhum de meus professores ou autores lidos sabiam o que eu faria deles!
Ocorre que eu fiz parte de um "ciclo" (ou um "projeto") universitário que terminou, aquele que pretendia formar "consciências críticas", "sujeitos" de sua própria história, "cidadãos" intervenientes, "agentes da transformação social", "atores da soberania nacional", praticando educações "emancipatórias e esclarecedoras" ... E sinto que estou fazendo o luto simbólico desse tempo, o tempo que me ofereceu os predicados substantivos e subjetivos de que disponho para conduzir minha vida, e que, provavelmente, não terão mais utilidade nesse "Novo Tempo"! O novo "ciclo" que se inicia é diferente e exige outras coisas do intelectual acadêmico: performance, produtividade, rentabilidade, competitividade, ranqueamento, hierarquias meritocráticas, relação direta com o mundo dos negócios e, claro, o uso de "inteligências" algorítmicas que, no meu modesto pensar, jamais chegarão aos pés intelectuais de um Goethe, um Freud, um Heidegger, um Sócrates, um Hegel, uma Arendt... nem em qualidade, nem em profundidade ou extensão.
Assim fiquei me perguntando o que meus "alunos" (ou "ex"!) querem fazer quando me oferecem livros de autores que nunca li e que, muitas vezes, nem sabia da existência deles? Numa perspectiva otimista diria que eles querem que eu não me afaste, que eu permaneça "atual", que vença meu simbólico "luto" (meus colegas dizem que eu sou "o último iluminista"! Gosto disso!) e, de alguma forma, ainda possa dizer algo sobre nossa época, maravilhosa e incompreensível. Mas, numa visada pessimista, pode ser que eles estejam me dizendo que eu preciso ler outras coisas, que não disponho mais dos conceitos necessários à nossa contemporaneidade: um recado gentil, carinhoso, mas implacável!
Lembrei daquele final do Dom Quixote, uma novela sobre o fracasso dos ideais, das ilusões, no fundo o fracasso de todas as vidas, que são projetos que nunca cumprem o que prometeram. A tal ponto que, quando o Quixote, já no leito de morte, renuncia a ser cavalheiresco e volta a ser Alonso Quijano, Sancho, toma a palavra e lhe diz: "Não morra, meu senhor, que isso é o pior que se pode fazer neste mundo, e vamos sair e vamos voltar outra vez a cavalgar, vamos voltar outra vez a viver as aventuras".
O que vocês, leitores, me aconselham a ler?
Flávio Brayner é, professor emérito da UFPE e visitante da UFRPE