Nem cigarros nem redes sociais
Na rotina da anamnese médica são anotados sintomas e sinais, antecedentes pessoais, história familiar e hábitos de vida.............

É importante, por exemplo, saber se fuma ou fumou e qual a carga tabágica. Pode-se então inferir a possibilidade de enfisema ou bronquite crônica, de doenças cardiovasculares, incluídos o infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, doença arterial periférica e amputações. Considerando a conhecida relação entre o tabagismo e diversos tipos de câncer, aumenta o nível de atenção do médico para com tais doenças.
Várias situações são relevantes, álcool em excesso, outras drogas, sexo não protegido, estresse, sedentarismo, banhos de rio em área endêmica para esquistossomose, exposição à insetos, gatos ou cachorros doentes, água contaminada, até a luz do sol em horário impróprio pode ter importância, dando razão ao "viver é perigoso".
Nos últimos tempos, mais uma condição passou a ser relevante para o processo de adoecimento de crianças, adolescentes e adultos: o uso das redes sociais que, assim como o cigarro, distrai enquanto provoca doenças.
A "carga de redes" está relacionada com transtorno de ansiedade, em grande parte resultado da comparação com os outros e a pressão para manter a imagem perfeita. Depressão, desânimo e isolamento agravados pelo número de curtidas e comentários. Distúrbios do sono causados pela luz das telas e o estímulo cerebral. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade relacionado ao conteúdo rápido e fragmentado, dificultando a concentração sustentada. Vício ou dependência digital, comportamento compulsivo de verificar notificações, ficando mal quando fora de área. Transtornos alimentares tendo como base o culto à imagem corporal, baixa autoestima ao se comparar com padrões idealizados. Esgotamento digital, resultado da necessidade de presença constante nas redes. Agressividade e suicídio são consequências possíveis, com mortes de usuários e de terceiros, assim como morrem fumantes ativos e passivos. Adolescentes constantemente ocupados nas redes deixam de ler livros e o tempo mostrará o impacto que isso terá sobre a civilização. Serão adultos melhores porque nunca leram um romance? Revolucionarão o mundo no sentido de mais harmonia, menos violência, mais solidariedade, saúde e paz?
Território sem lei, alegando liberdade de expressão, é palco para divulgação em massa de conceitos falsos, impunemente. Na área médica observa-se proliferação de "verdades" sobre suplementos alimentares desnecessários e por vezes perigosos, interpretação distorcida de exames complementares também desnecessários, erros básicos em informações sobre saúde e doenças comprometendo a prevenção e o tratamento indicados, promoção de práticas não testadas ou mesmo desaprovadas ao mesmo tempo que tratamentos fundamentais e comprovadamente indicados são ridicularizados criminosamente. A arrogância dos influenciadores nega a ciência, divulga conceitos anedóticos e convence seguidores fiéis. Passa a existir um mundo paralelo movido por notícias, opiniões e conceitos dissociados da realidade, como uma psicose coletiva de difícil tratamento.
A "verdade" da internet é incorporada de forma muitas vezes irreversível dando lugar ao radicalismo que parece dominar o mundo. Faz com que pessoas normais acreditem que Barack Obama nasceu no Afeganistão e é um agente do Estado Islâmico, infiltrado para destruir os Estados Unidos. Mesmo depois dos dois mandatos na presidência, milhões continuam acreditando, vítimas de técnicas bem estudadas que utilizam canhões para atacar suas mentes durante campanhas eleitorais e no dia a dia. O mesmo fenômeno faz com que passem a acreditar, alardear e defender raivosamente, sem qualquer relação com as estatísticas reais, que uma determinada vacina provoca mais mortes do que salva vidas.
Como disse o cineasta: "As redes sociais deram o direito de fala a legiões de imbecis que antes falavam apenas no bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade". Não só isso, a maldade humana encontrou nas redes sociais um terreno fértil para viralizar.
No ritmo e rumo ditado pelas redes, o último a sair vai dar "um like" e apagar a luz.
Sérgio Gondim, médico