A legalidade das fiscalizações surpresa realizadas por parlamentares
Apesar de serem válidas as fiscalizações realizadas sem prévio aviso, desde que aprovadas por órgão colegiado do Poder Legislativo.

Recentemente, instaurou-se na capital Pernambucana polêmica sobre a realização de fiscalizações realizadas por Vereadores em órgãos públicos da Prefeitura do Recife. O MPPE expediu recomendação em que reputa como ilegais as fiscalizações realizadas sem prévia aprovação por órgão colegiado da Câmara Municipal do Recife. Também considerou ilegais as fiscalizações realizadas sem prévio agendamento com a autoridade responsável pela unidade administrativa.
De proêmio, é importante dizer que o controle externo (poder de fiscalização de atos e do emprego de recursos públicos pelos gestores públicos) foi expressamente deferido pelo art. 70 da Constituição Federal ao Poder Legislativo (no âmbito municipal, conforme prescreve o art. 31 da Carta Magna, "A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo").
Dessa forma, a atuação fiscalizatória dos parlamentares é essencial para a transparência e o bom funcionamento da administração pública. Contudo, essa função deve ser exercida dentro dos limites constitucionais e legais estabelecidos, respeitando a separação dos poderes e os procedimentos regimentais.
O STF tem reiteradamente afirmado que a função de fiscalização do Poder Legislativo deve ser exercida por seus órgãos colegiados e não individualmente por parlamentares. Em decisões como as tomadas na ADI n° 3046/SP e no MS n° 22.471/DF, o STF destacou que a fiscalização é uma prerrogativa institucional da Casa Legislativa ou de suas comissões, não sendo atribuição individual de seus membros.
Nesse ponto, assiste razão ao MPPE. De forma oposta, entretanto, não é válida a restrição que tenta impor aos edis recifenses quanto à realização de fiscalizações com a necessidade de prévio agendamento.
De fato, uma vez previamente aprovada por um órgão colegiado da Câmara Municipal, como uma comissão ou o plenário, a fiscalização pode incluir visitas in loco a unidades administrativas da administração municipal, inclusive sem aviso prévio, desde que respeitados os direitos fundamentais e as normas legais. A exigência de agendamento prévio não encontra respaldo na jurisprudência do STF, que não impõe tal condição para a realização de fiscalizações previamente autorizadas por órgão colegiado legislativo.
A realização de fiscalizações surpresa é uma prática comum em órgãos de controle, como os Tribunais de Contas, que frequentemente realizam inspeções sem aviso prévio para garantir a efetividade do controle e evitar a ocultação de irregularidades. Essas ações são consideradas legítimas e eficazes, desde que conduzidas dentro dos parâmetros legais e com respeito aos direitos dos fiscalizados.
No sítio eletrônico da Atricon - Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil consta artigo do Conselheiro Domingos Dissei, do TCM/SP, intitulado "Tribunais de Contas e as fiscalizações preventivas e concomitantes", do qual colhem-se os seguintes esclarecimentos sobre esse tipo de fiscalização:
"E nessa perspectiva se ajustam, por exemplo, as fiscalizações-relâmpago, ou coordenadas, que estão sendo realizadas por Tribunais de Contas na forma, e. g., como foram concebidas e implantadas, em 2016, pelo TCE-SP, em que, sem qualquer aviso antecipado ao jurisdicionado, efetiva-se presencialmente, in loco, fiscalização surpresa para aferição das condições e da qualidade da prestação de serviços pela Administração e também o controle sobre execução de obras. Nesse sentido, podem ser mencionadas, como exemplos, as fiscalizações sobre conservação dos passeios públicos e condições de acessibilidade; merenda, transporte e material escolar, livros didáticos, uniformes; limpeza urbana e a destinação de resíduos sólidos; funcionamento dos hospitais públicos, equipes de plantão, validade de seus medicamentos; conservação de vias públicas (tapa-buraco, recapeamento), pontes, viadutos, semáforos; as condições e a qualidade dos serviços prestados por entidades do terceiro setor; creches; obras inacabadas etc.
Essas "incertas" contribuem para o aprimoramento do controle externo e não deixam de se transformar em instrumento apto a aferir, com maior eficácia e atualidade, a consecução do interesse público concreto, mediante verificação da qualidade dos serviços públicos que estão sendo prestados naquele momento à população. Nas auditorias-relâmpago, se o apontamento de não conformidade é imediato, então, da mesma forma, há que se buscar, tanto quanto possível, a correção também imediata das condutas administrativas irregulares, conferindo-se assim a efetividade esperada da atuação do órgão de controle externo na fiscalização da coisa pública.
Aliás, o elemento surpresa inserto nas auditorias coordenadas não deixa também de estar imbuído de certo caráter pedagógico, na medida em que passa a indicar para os jurisdicionados uma ininterrupta e deliberada atuação de controle, feita a qualquer momento pelos Tribunais de Contas, alertando os jurisdicionados e compelindo-os a, diuturnamente, evitarem desconformidades, irregularidades, falhas, inconsistências em atuação administrativa para consecução de políticas públicas, de modo a eximirem-se de presumível e consequente procedimento sancionatório pelo Controle Externo"
Ainda, no sítio da Atricon observa-se divulgação de reportagem sobre fiscalização surpresa realizada por 32 Tribunais de Contas brasileiros para apurar a qualidade da infraestrutura das salas de aula de escolas públicas (https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2023/04/Correio-do-Povo_Tribunais-de-Contas-revelam-os-resultados-da-fiscalizacao.pdf).
Portanto, as fiscalizações surpresa realizadas por parlamentares, quando previamente aprovadas por órgão colegiado do Poder Legislativo, são legais e compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro. Elas representam um instrumento válido e necessário para o exercício do controle externo e a promoção da transparência na gestão pública.
As fiscalizações surpresa buscam evitar que os gestores públicos escondam dos órgãos fiscalizadores as falhas que seriam constatadas quando da visita à unidade administrativa.
Igor Maciel, no texto "A oposição na Câmara do Recife e essa coisa "estranha" que é fiscalizar" (https://jc.uol.com.br/colunas/cena-politica/2025/04/09/a-oposicao-na-camara-do-recife-e-essa-coisa-estranha-que-e-fiscalizar.html), resume bem a falta de sustentação da obrigação de prévia comunicação do procedimento de fiscalização que se tenta impor aos Vereadores recifenses:
"O texto do MPPE diz que os vereadores precisam avisar com antecedência à prefeitura, quando forem fazer alguma fiscalização. É mais ou menos como se a polícia fosse obrigada a avisar aos bêbados sua localização quando fossem fazer uma fiscalização da Lei Seca. Curioso, pra dizer o mínimo".
Apesar de serem válidas as fiscalizações realizadas sem prévio aviso, desde que aprovadas por órgão colegiado do Poder Legislativo, é fundamental que as Câmaras Municipais estabeleçam procedimentos claros e transparentes para a execução dessas fiscalizações, garantindo que sejam conduzidas de forma ética, respeitosa e dentro dos limites legais, de forma a evitar o sensacionalismo e garantir o respeito às normas sanitárias e à segurança dos profissionais de saúde e dos usuários dos serviços médicos. Assim, fortalecem-se os mecanismos de controle democrático e a confiança da sociedade nas instituições públicas.
Paulo Fernandes Pinto, procurador da Assembleia Legislativa de Pernambuco, ex-Procurador do Ministério Público de Contas do TCE/PE e advogado especialista em Direito Público e Eleitoral.