Da velhice: uma lembrança de Bobbio
Norberto Bobbio, dono de uma erudição assombrosa, dizia, parafraseando Sêneca, que "Só quem não conhece a velhice pode desejá-la!".

Certa vez, o grande Norberto Bobbio (1909-1994) foi com sua neta ao banco resolver algo e, lá, enquanto esperava ser atendido, começou a conversar com um senhor de idade aproximada à sua (mais de 90 anos!), conversa tão prolongada e animada que sua neta, ao sair, perguntou-lhe se era um velho amigo. "-Não! Aliás, esqueci de perguntar o nome dele! Mas é que faz muito tempo que não converso com alguém sobre os anos 30!". Bobbio lamentava estar atingindo idade tão avançada e observou, em seu magnífico livro "O tempo da memória (De senectute)", que o pior de uma longa velhice era ver o mundo "desaparecer" antes que você mesmo desaparecesse: todos os amigos que partilharam com ele os grandes acontecimentos do século (o Fascismo, a Resistência, a reconstrução da Europa) já tinham partido; quase todos os lugares que ele frequentara na juventude e maturidade tinham sido tragados pelas transformações urbanas e, para ele, conversar com um jovem que conhece o passado do século XX através dos livros e documentos, era muito diferente de conversar com uma pessoa que o tinha vivido. Aliás, o jornalista e escritor Paulo Francis (em "O afeto que se encerra") também disse algo parecido: só quem é da mesma geração pode compreender a atmosfera de uma época, e a experiência vivida não pode ser inteiramente "transmitida" aos que não a viveram.
Simone de Beauvoir publicou seu erudito "A Velhice. A realidade incômoda" em 1976, retirando da velhice seus aspectos de um processo de condenação lenta à decadência (serenidade/senilidade; maturidade/ fragilidade; equilíbrio/demência; sabedoria/esquecimento; aconselhamento/inutilidade; virilidade/impotência...) e mostrando através da ciência, da literatura e da filosofia como a velhice fora enxergada através dos tempos. "A velhice não é um fato estático. (...)O que é envelhecer ?, pergunta. Nossa existência é uma morte lenta? Certamente não. Esse paradoxo desconhece a verdade essencial da vida: ela é um sistema instável no qual se perde e se reconquista o equilíbrio a cada instante; a inércia é que é sinônimo de morte"! Para ela a velhice abre uma gama de possibilidades.
Mas, a velhice também impõe sérios limites, entre eles o da relação intergeracional.
Conversar com certos jovens, hoje, me deixa às vezes me sentido ridículo e humilhado: não tenho habilidades digitais, não conheço a linguagem pós-analógica, vivi na juventude, sem celular e sem internet, as músicas de que gosto são 'démodées', e pra fazer uma prosaica "live", para falar sobre temas de meu interesse, tenho que recorrer - mais uma vez!- ao jovem daqui de casa, meu filho, José Cândido (25 anos) que já sai do quarto (onde mora com a porta fechada! Outra característica de nossa época!) com a inscrição na testa "Você é muito burro!"... O problema, pois, da velhice não é só, como queria Bobbio, o desaparecimento do mundo, nem tampouco a certeza de que os jovens (os recém chegados a este mesmo mundo) introduzirão algo "novo": como no vaticínio de H. Arendt, os jovens também promovem o desaparecimento do que existia, e o passado não exercendo mais nenhum poder de imantação ou autoridade, nós, mais velhos, ficamos com a desagradável sensação de vagar num mundo às vezes estranho ou hostil onde nos tornamos cada vez mais... "burros"!
Bobbio, proprietário de uma erudição assombrosa sobre a Antiguidade latina, dizia, parafraseando Sêneca, que "Só quem não conhece a velhice pode desejá-la!".
Flávio Brayner , professor Emérito da UFPE