Priscila Lapa e Sandro Prado: Bolsa família: mulheres, empreendedorismo e superação da pobreza
Programa continua sendo ferramenta vital na luta contra a pobreza. Com ajustes e investimentos, pode ampliar o impacto positivo

Desde sua implementação em outubro de 2003, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Bolsa Família tem se consolidado como uma política pública fundamental na mitigação da pobreza no Brasil. Combinando transferência direta de renda e condicionalidades sociais, o programa visa não apenas aliviar a pobreza imediata, mas também interromper seu ciclo intergeracional, promovendo a inclusão social e econômica das famílias beneficiadas.
O número de famílias atendidas pelo programa aumentou significativamente ao longo dos anos, passando de 6 milhões em 2004 para 13,3 milhões em 2017, e alcançando 20,48 milhões atualmente. Esse crescimento expressivo contribuiu para a redução dos níveis de pobreza e desigualdade no país. Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indicam que as regiões Norte e Nordeste foram as mais positivamente impactadas por essa política de transferência de renda.
Evidências empíricas demonstram a consistência dos efeitos intergeracionais do Bolsa Família. Estudo publicado na revista World Development Perspectives revelou que, ao atingirem a idade adulta, cerca de 64% dos indivíduos que foram beneficiários do programa na infância não dependem mais de políticas de transferência de renda, indicando um processo efetivo de mobilidade social.
A relação entre o Bolsa Família e o empreendedorismo é uma dimensão frequentemente negligenciada. O programa atua como uma plataforma de segurança mínima que viabiliza a tomada de risco produtivo entre populações historicamente excluídas do mercado formal. Beneficiários em situação de extrema pobreza, ao terem garantido o mínimo para sua subsistência por meio do programa, demonstram maior disposição para iniciar pequenos negócios informais, especialmente no comércio e na prestação de serviços.
Pesquisas do IPEA e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) indicam que há correlação entre a permanência no programa e a busca por fontes complementares de renda, muitas vezes por meio do microempreendedorismo. Ainda que o valor do benefício não seja elevado, ele opera como uma “rede de segurança" que reduz a aversão ao risco, funcionando como estímulo indireto ao empreendedorismo por necessidade.Essa lógica é ainda mais efetiva quando há articulação com políticas públicas de capacitação profissional, acesso ao microcrédito orientado, formalização via MEI e suporte técnico continuado, como os realizados pelo SEBRAE. Assim, o Bolsa Família, longe de ser um entrave ao trabalho, pode ser compreendido como um instrumento facilitador da transição da vulnerabilidade para a autonomia econômica, desde que conectado a um ecossistema de políticas de inclusão produtiva.
O programa também desempenha um papel crucial na promoção da equidade de gênero. Atualmente, 83,4% dos responsáveis familiares beneficiados pelo Bolsa Família são mulheres, muitas delas chefes de famílias monoparentais. Esse reconhecimento institucional do papel central das mulheres na gestão dos recursos familiares contribui para sua autonomia econômica e fortalece sua posição social.
A crítica de que o Bolsa Família gera dependência e deveria ser extinto carece de embasamento empírico e ignora décadas de pesquisas e avaliações técnicas sobre programas de transferência de renda. Estudos de impacto realizados por instituições como o Banco Mundial demonstram que o programa tem efeitos positivos na escolarização, na saúde infantil e, sobretudo, na mobilidade social das famílias beneficiadas.
Os dados mais recentes mostram que a maioria dos beneficiários permanece no programa por períodos relativamente curtos e que, ao longo do tempo, grande parte deles conquista autonomia econômica – como evidenciado pelo fato de que cerca de 2/3 dos jovens que cresceram em famílias beneficiadas não necessitam mais de assistência social na idade adulta. Além disso, o valor médio do benefício — cerca de R$ 680 mensais — não configura incentivo à inatividade laboral, mas sim um alívio mínimo diante da vulnerabilidade socioeconômica enfrentada.
Para nós, o Bolsa Família continua sendo uma ferramenta vital na luta contra a pobreza no Brasil. Com ajustes e investimentos estratégicos, o programa pode ampliar ainda mais seu impacto positivo, promovendo uma sociedade mais justa e equitativa. É fundamental aprimorar os mecanismos de governança, monitoramento e avaliação, garantir a eficácia e a transparência do programa, investir em iniciativas que promovam a capacitação profissional e o empreendedorismo entre os beneficiários e considerar as questões de gênero na formulação de políticas públicas.
Extinguir o Bolsa Família significaria não apenas comprometer a segurança alimentar de milhões de brasileiros, mas também abandonar uma das políticas públicas mais reconhecidas internacionalmente pela sua eficácia no combate à pobreza. O verdadeiro desafio está em aprimorar e integrar o programa com políticas de educação, qualificação profissional e apoio ao empreendedorismo, e não em desmontar um dos pilares da proteção social no país.
Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política; Sandro Prado, economista e professor da FCAP-UPE.