Gustavo Krause: José Guilherme Merquior, presente!
Uma singela homenagem a quem o acadêmico Eduardo Portela se referiu como "a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista"

No dia 22 do mês em curso (terça-feira), Merquior completaria 84 anos. Ano passado, escrevi um artigo sob o título “Merquior, a flor e o fruto” publicado no Jornal do Commercio e no Blog do Noblat (edições do dia 14 de abril de 2024), uma singela homenagem a quem o Acadêmico Eduardo Portela (1932-2017) se referiu como “a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista: irreverente, agudo, sábio”.
A rigor, minha iniciativa era uma espécie de renovada admiração ao que escrevera e foi publicado nas edições do Correio Braziliense e no Jornal do Commercio em 13 de janeiro de 1991, sob o impacto do falecimento de Merquior ocorrido no dia sete daquele mês. Foi o título “Merquior e a idade da flor” que inspirou o artigo mais recente e que me leva a reproduzir o texto original (13/01/1991) permeado pelo inapagável sentimento de perda:
A MORTE E A IDADE DA FLOR
“A morte de José Guilherme Merquior causou-me uma enorme sensação de perda. Aliás, esta é uma sensação natural quando morre alguém que projetou seu talento individual na construção de um patrimônio público do qual os cidadãos, indistintamente, são condôminos, pelo menos, no legítimo direito da contemplação. É o caso dos artistas, dos líderes políticos, dos intelectuais que, de repente, entram em nossas vidas sem pedir licença e nos fazem íntimos de sua obra, do seu jeito de ser, de sua fisionomia sem que saibam a dimensão da legião de admiradores e amigos anônimos e unilaterais.
Até aí nada demais. No entanto, o que me causou espanto foi que minha sensação de perda foi mais profunda do que seria esperado. Senti a emoção de uma perda pessoal.
De Merquior, cruzei os caminhos, no máximo, três vezes, na qualidade de servidor público: eu, como político, e ele servindo na chefia de gabinete do então Ministro Leitão de Abreu. Nada, além das frias e necessárias formalidades de praxe. Pois bem, o silêncio e a tristeza – eloquentes manifestações de depressão – eram reveladoras de um luto interior tal como se houvesse desaparecido criatura situada no círculo das minhas relações íntimas.
Subitamente, compreendo que Merquior estava próximo. E como estava! Nos últimos quatro anos, venho acompanhando de perto (e dentro dos modestos limites da capacidade de lê-lo) a sua brilhante, eclética e vasta produção intelectual. Com a prudência de percorrer o caminho do mais simples para o mais complexo. Primeiro, os artigos, as entrevistas, o pensamento político. Todo domingo em O Globo. O último foi “O sentido de 1990”. Sempre estava recorrendo ao seu Argumento liberal e, com muito esforço, andei ousadamente pelas páginas de O marxismo ocidental. A erudição enciclopédica, ao invés do verniz da superficialidade, era instrumento de um saber abissal. Somente uma profundidade rara seria possível desafiar o que considerava os grandes mitos contemporâneos: o marxismo, a psicanálise e o modernismo.
Recentemente (e coincidentemente), antes de começar a dar uma olhada no ensaio Crítica sobre arte e literatura, tinha repassado nada menos do que três notáveis prefácios de Merquior. O que escreveu em 1971, dedicado a Kolakowski, na obra de Aron, Estudos políticos, de quem, juntamente com Bobbio, recebia uma clara influência na articulação de um liberalismo que o configurava como um social-liberal.
O outro prefácio foi uma releitura que fiz do que Merquior escreveu ao introduzir no Brasil a preciosa edição do Dicionário crítico da Revolução Francesa, de François Furet e Mona Azouf.
E no dia de sua morte, depois de me deliciar com Brás Cubas, Lobo Neves e o humanismo de Quincas Borba, inverto as bolas e, concluída a leitura, passo para o prefácio que é de Merquior (um estudioso da obra de Machado, superado apenas por Roberto Schwartz, o autor de Um mestre na periferia do capitalismo). No texto, Merquior dá um interessante realce ao gênero cômico-fantástico ou literatura menipeia do que chama “romance carnavalesco de Machado”.
Ocupava-me precisamente desta leitura quando tive a notícia de sua morte. Por um instante as letras se petrificaram em rigidez cadavérica. Depois, deram o ar da imortalidade. Em minutos, eu passava da obra de um mortal para a bem-aventurança da imortalidade – um diferente reino onde todos dormem apenas um sono interino.
O choque com a realidade pôs no lugar minhas emoções e aí procurei recordar por inteiro o ensaísta vigoroso e prolífero, a erudição abrangente; a sua autodefinição sintética como “um liberal na economia, um social-democrata na política e um anarquista na cultura”.
Relembrei o polemista alto, civilizado, dialeticamente quase imbatível, um elegante logocrata que, sem perder a linha, enquadrava os supostos intelectuais nos limites da santa ignorância, mesmo quando a enfermidade do sectarismo ideológico se perdia no recurso aético dos rótulos e das ofensas pessoais. Os verdadeiros homens do intelecto tinham o prazer da divergência com Merquior.
Com efeito, travou as suas últimas polêmicas com o jovem articulista Ricardo Musse e o jornalista Bernardo de Carvalho, ambos da Folha de São Paulo. Com o primeiro foi contundente, no plano das ideias, o que ensejou uma tréplica solidária e amena de Celso Lafer. Com o segundo foi impaciente. O seu entrevistado confundiu o poeta italiano Metastásio com metástase. Não era para menos, Merquior estava recém-operado do câncer que o vitimou.
Morte injusta e cruel. Saem de cena as boutades e a produção do “rapaz” que, segundo Aron, “leu tudo”.
Aos liberais, deixa um precioso legado, escrito em inglês, a ser publicado neste semestre sob o título Liberalism Old and New. E a todos fica o desconsolo da morte aos 49 anos, a idade da flor, aquela idade que nem todos os humanos vivem. A idade em que a beleza esplendorosa atrai para si os olhares da admiração”.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco