Dayse de Vasconcelos Mayer: Tempo de re-silenciamento: o assalto à ciência e a derrocada das universidades
Na visão de Donald Trump, pouco importa que o mundo caia na recessão e que a democracia entre em colapso, o importante é a "receita"

O ano é 1970 e eu ingressava na Penn State University por meio de programa financiado pela USAID, desmontado, proximamente, por Elon Musk, acólito de Trump.
O 45º e 47º presidente dos Estados Unidos representa, hoje, a modalidade mais ruinosa do planeta. Se vivíamos num mundo assustador, tudo se agravou com o clima de entropia ou instabilidade existente. Na visão de Donald Trump, pouco importa que o mundo caia na recessão e que a democracia entre em colapso, o importante é a “receita”.
E não se afirme que tudo isso é resultado de um clique impetuoso. Na vida nada sucede por acaso. Não surpreende, portanto, que o presidente nulifique a percepção de Benjamin Franklin de que “investir em conhecimento sempre rende os melhores juros”. Afinal, Trump acredita que “dinheiro é, acima de tudo, poder”.
O maior exemplo é a venda do “Gold Card” – cartão dourado com o rosto e assinatura presidencial – diante de uma imagem da Estátua da Liberdade e registro do valor a ser quitado: US$ 5 milhões de dólares pagos ao Tesouro norte-americano em troca da cidadania norte-americana.
Todavia, não basta a nossa indignação solitária. Temos que traçar limites corretos e de forma coletiva. Afinal, o silêncio institucional tem um nome: “cumplicidade”.
O que está em causa não é apenas a autonomia das universidades – últimos redutos de liberdade de pensamento – é o modelo de sociedade que defendemos, alforriada da censura. É tempo, enfim, de re-silenciamento crítico.
Com um parêntese rápido, isso não causa estranheza ao Brasil. Em nosso país, o descaso com as universidades foi sempre algo manifesto. Nossos cientistas vivem à míngua. Estimula-se, não raro, a atonia pela ausência de incitamento à investigação séria. Sem falar no incremento à corrupção por meio do desvio de verbas federais para interesses pecaminosos. Basta comparar o salário do poder Judiciário e do Legislativo com o acréscimo de burundangas.
Tanto no Brasil como nos EUA, a população é responsável direta pelo cenário projetado. Um exemplo recente é o da Grã-Bretanha. O Brexit revelou o equívoco dos ingleses ao se “emanciparem” da EU. Tudo na contramão da história que principia com a Comunidade do Carvão e do Aço, criada em 1951.
Por isso, a crise gerada por Trump, há duas semanas, não é uma guerra de tarifas, é o sintoma de um vírus mortal que se instalou nas afundas da sociedade norte-americana: o programa ideológico dos ultraconservadores. Ele encontra guarida no Projeto 2025 – Projeto de Transição Presidencial – surgido para consolidar o poder executivo em favor de políticas de direita.
Publicado em abril de 2023 pela The Heritage Foundation, incluía o desmonte do Departamento de Educação e da USAID, com ameaças de corte de verbas e restrição à liberdade acadêmica e o cutelo na cultura “woke” – com exclusão de tópicos e termos como o racismo; diversidade; equidade, inclusão; feminismo; LGBT; aliança; solidariedade; crise climática...
A primeira universidade bombardeada com a estratégia de prêmios e castigos foi a Columbia. O jogo de dominó iria afetar outras instituições, a exemplo da Stanford, Penn State, Brown, Maine, Michigan e até mesmo a Yale, a universidade mais antiga de ensino superior dos EUA e responsável pela formação da Suprema Corte e de presidentes norte-americanos.
Também Harvard, agraciada, ao longo da sua história, com 150 Prêmios Nobel, foi notificada da perda de milhões de dólares. Tal ameaça implicou o encerramento do gabinete DEI – Diversidade, Equidade, Inclusão e Pertencimento – criado em 2016, inicialmente para filhos de pais sem formação superior.
Advertida pela Casa Branca do corte de US$ 400 milhões, Columbia capitulou, mesmo sabendo que isso representava um sério risco à liberdade acadêmica. À vista disso, Sheldon Pollock, um dos intelectuais mais respeitados da Columbia, afirmou que era o “princípio do fim das universidades americanas com um grau de autonomia conhecido desde 1915”.
Também Jason Stanley, estudioso do neofascismo nos EUA e autor do livro Como funciona o fascismo – a política dos nós e eles, traduzido para 20 idiomas, incluindo o português, revelou a sua transferência para o Canadá, alegando que já se vislumbrava o prenúncio de uma “ditadura incipiente”.
A seu tempo, a revista Nature registrou que três quartos dos cientistas entrevistados pretendem deixar os EUA. A mesma notícia consta do The Economist. Portugal já divulgou a ideia de um plano de criação de um programa europeu de atração de cientistas de vértice e a possibilidade de alocação de 80 milhões de euros para serem aplicados em programas dessa natureza.
A Sociedade Max Planck, o Instituto Karolinska – universidade pública sueca –, a Universidade Livre de Bruxelas e a Aix-Marseille já se preparam para esse tipo de recepção.
Mas, a pior notícia dos últimos dias foi divulgada pelo Público: a Embaixada dos EUA enviou um questionário ideológico com 36 perguntas dirigidas a universidades portuguesas, indagando a existência de partidos comunistas, origem de fundos recebidos, tipo de relação com a China, agenda climática, diversidade de gênero etc.
Calcula-se que o mesmo tenha ocorrido com outras universidades estrangeiras que recebem aporte financeiro dos EUA. Em qualquer conjuntura, seria impensável que a ciência venha a se curvar à vontade de qualquer país estrangeiro (e até nacional).
Está na hora de rever as palavras de Churchill, numa referência aos acordos de paz com Hitler: “Há quem alimente os crocodilos, na esperança de ser o último a ser abocanhado”.
Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em Ciências Jurídico-Políticas