A estupidez de Trump
Tudo se complica quando a estupidez de Trump se transforma numa guerra tarifária com a China, segunda maior economia do mundo.......

A Nike é uma multinacional estadunidense, com sede no Oregon, que se destaca como a maior fornecedora mundial de calçados e vestuário esportivos. A produção dos calçados e vestuário da empresa está distribuída em vários países do mundo, com destaque para a China, o Vietnã, a Indonésia e outras nações asiáticas. Embora os Estados Unidos sejam um grande consumidor dos seus produtos, a Nike prefere confeccionar o tênis onde o custo de produção é mais baixo, tão mais baixo que é vendido nos Estados Unidos por um preço bem inferior ao que conseguiria se produzisse internamente. Segundo estimativas, 50% dos tênis da Nike vendidos no Estados Unidos são produzidos no Vietnã, país que Trump está penalizando agora com altas taxa tarifárias.
A Apple, multinacional com sede na Califórnia, é talvez o modelo mais acabado de integração global em torno de um produto, o Iphone, com inteligência e gestão, componentes e insumos distribuídos em diversos países que são reunidos e montados fora da sede da empresa (a Coreia do Sul fornece os displays, os microchips são desenvolvidos no Japão, interfaces de semicondutores são holandeses, e outros componentes são da Suíça, da própria China e até dos Estados Unidos). Esta distribuição territorial dos componentes aumenta a eficiência e eleva a rentabilidade geral da empresa. Mas, a parcela do processo produtivo geral com maior valor agregado está concentrada nos Estados Unidos, precisamente onde se localizam os elos mais relevantes da cadeia global de valor - inteligência, tecnologia, design e marketing. A China é responsável por cerca de 90% da montagem final dos Iphones vendidos no mundo, mas os sócios norte-americanos da empresa se beneficiam dos baixos custos de produção no grande país asiático e da apropriação dos valores concentrados nos elos nobres da cadeia global de valor.
À Nike e à Apple não interessam restringir as importações dos seus produtos confeccionados fora dos Estados Unidos, nem têm vantagens em trazer a produção para o território estadunidense, porque teriam um custo muito maior para repassar ao consumidor final e, provavelmente, poderiam perder cliente. O que o estúpido presidente dos Estados Unidos não sabe ou ignora é que a principal fonte de lucro da Nike e da Apple não está na confecção final dos produtos na China ou no Vietnã. As etapas mais rentáveis do processo de produção de tênis e Iphones reside na concepção, no desenvolvimento tecnológico, no design, no marketing e outras componentes nobres do processo produtivo.
Estas duas grandes empresas são apenas exemplos da intensa integração econômica e comercial das últimas décadas, no processo de globalização, construído em base aos acordos da Organização Mundial do Comércio, que levou à formação de vastas cadeias globais de valor que distribuem as diversas etapas produtivas em vários países, elevando a eficiência e a lucratividade dos negócios. Cada produto que sai de uma fábrica organiza e monta uma grande quantidade de serviços (concepção, tecnologia, design e marketing), de matérias primas e suprimentos provenientes de múltiplos países. Quando, ao longo de várias décadas, parte das grandes empresas dos Estados Unidos (e da Europa) transferiram a manufatura para países de menor desenvolvimento, aumentaram a lucratividade geral e ainda concentraram as etapas que mais agregam valor ao produto.
Os Estados Unidos terão que pagar um preço muito alto pela estupidez de Trump, retração da economia e inflação, além da profunda desorganização no caso, de resto improvável, de uma transferência de volta para os Estados Unidos das unidades produtivas distribuídas no planeta e integradas mundialmente. Como os Estados Unidos são responsáveis por 25% de todas as trocas comerciais do mundo, uma crise na economia estadunidense desorganiza o comércio mundial, quebra as cadeias globais de valor, provocando um movimento combinado de inflação e retração econômica. Na verdade, a simples incerteza que decorre das decisões voluntariosas e erráticas de Trump já é suficiente para provocar uma redução nas decisões de investimentos e, mesmo, de contratos e negócios internacionais, além da desconfiança e instabilidades no sistema financeiro.
Tudo se complica quando a estupidez de Trump se transforma numa guerra tarifária com a China, segunda maior economia do mundo, com abrangente presença no comércio mundial. As economias dos Estados Unidos e da China são a locomotiva do mundo e estão tão altamente integradas e interdependentes que esta disputa comercial pode travar o sistema econômico global. Juntos, os dois países são responsáveis por 44% do PIB-Produto Interno Bruto mundial, os Estados Unidos têm uma maior base econômica, mas a China tem a economia mais dinâmica do planeta, sucessos de lado a lado que decorrem precisamente da integração econômica e comercial da globalização. A China exporta quase três trilhões de dólares, equivalentes a 13,3% de todas as exportações mundiais, sendo que 17,6% do total exportado vai para os Estados Unidos, o segundo maior exportador e um grande mercado consumidor do mundo. Para completar esta integração das duas grandes economias, a China é um dos grandes financiadores de dívida pública dos Estados Unidos, detendo 761 bilhões de títulos (superado apenas pelo Japão, com um trilhão), o que reforça a interdependência das duas economias e a influência chinesa no sistema financeiro estadunidense.
A escalada desta guerra comercial - com desdobramentos cambiais e financeiros - levará os dois gigantes a afundarem abraçados, levando juntos todo o arcabouço da economia mundial formatada ao longo de várias décadas. O comércio mundial entra numa profunda desorganização, as cadeias globais de valor travam e o suprimento de insumos e serviços pode colapsar. E, no caso de disputa cambial e de desvalorizações dos títulos da dívida dos Estados Unidos, o mundo pode viver uma crise financeira pior do que a que tivermos em 2008. A estupidez do presidente dos Estados Unidos pode levar ao desmonte da economia mundial, um retrocesso dramático da globalização com uma corrida, nefasta e arcaica, em busca de autossuficiência das nações. Parece que Trump quer mesmo empurrar o mundo de volta às primeiras décadas do século passado, na contramão da história, que vive um impulso acelerado de inovação tecnológica e digitalização econômica que não cabe no modelo do arrogante magnata do mercado imobiliário.
Sérgio C. Buarque, economista