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O garçom não quer mais servir

A política imprevisível de do presidente4 Donald Trump é mais um capítulo das novas regras de relações de poder entre países........

Por OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS Publicado em 12/04/2025 às 0:00 | Atualizado em 14/04/2025 às 10:36

Desde que Donald Trump decidiu impor tarifas retaliatórias aos mais diversos países com os quais os Estados Unidos têm relações comerciais, o mundo virou de cabeça para baixo.

Da opulenta União Europeia à sofrida Ilha de Madagascar, taxas alfandegárias fizeram os produtos transacionados pelos países subirem de preço.

Nas mídias sociais corre uma historinha apócrifa que procura dar razão a Trump. Vou transcrevê-la com pequenas alterações:

Imagine uma festa elegante, com todos os países do mundo como convidados. No centro, servindo iguarias — sempre de graça —, estava o garçom da casa: os Estados Unidos.

Por décadas, os brindes foram animados, os discursos elogiosos e as críticas sofisticadas. Até que o garçom se irritou e avisou:

— A partir de agora, cada um paga o que consumir.

O salão silenciou, as taças caíram, os canapés foram regurgitados, a banda desafinou.

Chamaram o garçom de intransigente. Mas todos sabiam: a conta estava alta demais para ele.

Por equilíbrio de opinião, cabe outra versão dessa história:

A festa foi planejada com minúcias há muito tempo. Além de servir os drinks, o garçom comprara o salão, pagava a banda e era sócio do buffet.

Logo após a Segunda Guerra, para ganhar dinheiro com os eventos, ele criou regras para uso do salão.

Primeiro, ele organizou a sala Plano Marshall — uma espécie de "open bar para reconstrução" do velho continente.

— Toma aqui uns bilhões para reformar a casa de vocês, mas nada de simpatia com aqueles soviéticos.

Não parou aí. Em outra sala, ele criou o Clube Bretton Woods, com dois sócios principais: FMI e Banco Mundial. Quem entrasse ganhava empréstimos e consultoria — mas tinha que seguir uma cartilha ortodoxa. Nada de gastar mais do que podia. E se o país ficasse devendo, tinha que cortar sobremesa e fechar a dispensa para a sua população.

Depois veio o GATT, o manual de regras da festa:

— Nada de cobrar couvert do meu pessoal. E se quiser vender docinhos aqui, compre o meu freezer aí.

Para segurança do casarão, o garçom criou a OTAN — um grupo de convidados VIP que recebia apoio militar contra a URSS, desde que concordassem em dançar conforme a música.

No salão Ásia, ele inventou o Plano Colombo. Uma bandeja de ajuda e investimento com a clássica condição:

— Nada de dança das fitas (dança típica chinesa) na pista de baile.

No salão América Latina, veio com a Aliança para o Progresso, um tipo de "crédito consignado geopolítico":

— Quer modernizar sua festa? Eu ajudo. Mas em troca, nada de brinde por Cuba.

Por anos, o garçom parecia generoso e era. Mas não fazia caridade: estava montando o seu próprio sistema de catering global, onde ele controlava o cardápio, o caixa e até o tema da festa. E cobrava caro por isso.

Para compreenderem esse processo, indico-lhes o livro CONFISSÕES DE UM ASSASSINO ECONÔMICO, de John Perkins.

Quando o garçom apresentou a conta, ninguém podia dizer que não sabia das regras. Só não esperavam juros tão escorchantes.

Tema tão complexo, comentado de forma espirituosa, dá ao leitor a sensação de que tudo vai passar e que breve a banda vai tocar novamente Glenn Miller.

Não vai!

A política imprevisível de Trump - se é que é imprevisível, pois pode ser estratégia pensada do morde e assopra - é mais um capítulo das novas regras de relações de poder entre países.

O modelo baseado em códigos formulados por um único centro de poder já não é aceito com naturalidade. Países emergentes buscam autonomia; blocos alternativos se formam; novas potências passam a organizar suas próprias festas.

Contudo, a estrutura global ainda depende da gestão americana. O dólar é a principal moeda de reserva. A tecnologia, o poder militar e a capacidade de coordenação política mundiais ainda passam por Washington.

Questionamentos legítimos surgem: até quando esse modelo se sustentará? Será possível uma nova festa, com regras mais transparentes e uma distribuição mais justa de custos e benefícios?

A metáfora da festa ajuda a simplificar, mas expõe desafios: doravante, a liderança global do garçom não se dará apenas pela força, mas pela capacidade de fazer com que os outros concordem com a conta. E, por enquanto, mesmo que seja justa, ele não está conseguindo encontrar quem pague por ela sem contestar o desproporcional couvert artístico e os elevados 150% de gorjeta.

 

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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