O garçom não quer mais servir
A política imprevisível de do presidente4 Donald Trump é mais um capítulo das novas regras de relações de poder entre países........

Desde que Donald Trump decidiu impor tarifas retaliatórias aos mais diversos países com os quais os Estados Unidos têm relações comerciais, o mundo virou de cabeça para baixo.
Da opulenta União Europeia à sofrida Ilha de Madagascar, taxas alfandegárias fizeram os produtos transacionados pelos países subirem de preço.
Nas mídias sociais corre uma historinha apócrifa que procura dar razão a Trump. Vou transcrevê-la com pequenas alterações:
Imagine uma festa elegante, com todos os países do mundo como convidados. No centro, servindo iguarias — sempre de graça —, estava o garçom da casa: os Estados Unidos.
Por décadas, os brindes foram animados, os discursos elogiosos e as críticas sofisticadas. Até que o garçom se irritou e avisou:
— A partir de agora, cada um paga o que consumir.
O salão silenciou, as taças caíram, os canapés foram regurgitados, a banda desafinou.
Chamaram o garçom de intransigente. Mas todos sabiam: a conta estava alta demais para ele.
Por equilíbrio de opinião, cabe outra versão dessa história:
A festa foi planejada com minúcias há muito tempo. Além de servir os drinks, o garçom comprara o salão, pagava a banda e era sócio do buffet.
Logo após a Segunda Guerra, para ganhar dinheiro com os eventos, ele criou regras para uso do salão.
Primeiro, ele organizou a sala Plano Marshall — uma espécie de "open bar para reconstrução" do velho continente.
— Toma aqui uns bilhões para reformar a casa de vocês, mas nada de simpatia com aqueles soviéticos.
Não parou aí. Em outra sala, ele criou o Clube Bretton Woods, com dois sócios principais: FMI e Banco Mundial. Quem entrasse ganhava empréstimos e consultoria — mas tinha que seguir uma cartilha ortodoxa. Nada de gastar mais do que podia. E se o país ficasse devendo, tinha que cortar sobremesa e fechar a dispensa para a sua população.
Depois veio o GATT, o manual de regras da festa:
— Nada de cobrar couvert do meu pessoal. E se quiser vender docinhos aqui, compre o meu freezer aí.
Para segurança do casarão, o garçom criou a OTAN — um grupo de convidados VIP que recebia apoio militar contra a URSS, desde que concordassem em dançar conforme a música.
No salão Ásia, ele inventou o Plano Colombo. Uma bandeja de ajuda e investimento com a clássica condição:
— Nada de dança das fitas (dança típica chinesa) na pista de baile.
No salão América Latina, veio com a Aliança para o Progresso, um tipo de "crédito consignado geopolítico":
— Quer modernizar sua festa? Eu ajudo. Mas em troca, nada de brinde por Cuba.
Por anos, o garçom parecia generoso e era. Mas não fazia caridade: estava montando o seu próprio sistema de catering global, onde ele controlava o cardápio, o caixa e até o tema da festa. E cobrava caro por isso.
Para compreenderem esse processo, indico-lhes o livro CONFISSÕES DE UM ASSASSINO ECONÔMICO, de John Perkins.
Quando o garçom apresentou a conta, ninguém podia dizer que não sabia das regras. Só não esperavam juros tão escorchantes.
Tema tão complexo, comentado de forma espirituosa, dá ao leitor a sensação de que tudo vai passar e que breve a banda vai tocar novamente Glenn Miller.
Não vai!
A política imprevisível de Trump - se é que é imprevisível, pois pode ser estratégia pensada do morde e assopra - é mais um capítulo das novas regras de relações de poder entre países.
O modelo baseado em códigos formulados por um único centro de poder já não é aceito com naturalidade. Países emergentes buscam autonomia; blocos alternativos se formam; novas potências passam a organizar suas próprias festas.
Contudo, a estrutura global ainda depende da gestão americana. O dólar é a principal moeda de reserva. A tecnologia, o poder militar e a capacidade de coordenação política mundiais ainda passam por Washington.
Questionamentos legítimos surgem: até quando esse modelo se sustentará? Será possível uma nova festa, com regras mais transparentes e uma distribuição mais justa de custos e benefícios?
A metáfora da festa ajuda a simplificar, mas expõe desafios: doravante, a liderança global do garçom não se dará apenas pela força, mas pela capacidade de fazer com que os outros concordem com a conta. E, por enquanto, mesmo que seja justa, ele não está conseguindo encontrar quem pague por ela sem contestar o desproporcional couvert artístico e os elevados 150% de gorjeta.
Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva