JC: 106 anos!
Espaço público é o lugar do confronto das opiniões (a democracia não é o Reino da Verdade Apodítica!), baseadas na palavra , na argumentação.

Na solenidade de comemoração dos 106 anos do Jornal do Commercio, e do lançamento do Novo Portal SJCC, tive a oportunidade de ouvir os pronunciamentos de Laurindo Ferreira (nosso Editor Chefe), Igor Maciel (colunista político), Marcelo Rech (Presidente da Associação Brasileira de Jornais) e Murilo Garavello (UOL). Chamou-me a atenção frases pronunciadas pelos três primeiros naquela solenidade:
Laurindo: "O jornalismo é difícil. Se não fosse difícil não seria jornalismo!"
Igor: "O jornalismo não é lugar para se fazer amigos!"
Marcelo: "O jornalismo não vende matérias ou anúncios: vende confiabilidade!"
Não sou jornalista, sou apenas um colaborador semanal (há mais de 20 anos!) que teve a sorte de encontrar um Ivanildo Sampaio que me abriu as portas do JC, onde posso expor ideias, reflexões, críticas, propostas... sem nenhum temor de ser censurado ou "cancelado". Sei o que digo/escrevo, mas não tenho a menor ideia de como as pessoas me leem/interpretam (salvo, claro, aqueles que me respondem). Reconheço que me situo numa dupla posição: a daquele que FORMA (educador) e a do que INFORMA (colaborador de um jornal): são duas posições diferentes e complementares que procurarei discuti-las usando, aqui, os "motes" que aqueles três debatedores propuseram: a "DIFICULDADE", a "AMIZADE" e a "CONFIABILIDADE".
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Toda a dificuldade de averiguar um fato (social, político, econômico, esportivo, cultural) não se situa na ocorrência real ou na existência do "fato em si", mas na circunstância de que todo "fato" é sempre fato visto ou narrado por alguém (posição da Fenomenologia), ou ele, o fato, não poderia ser nomeado, pensado ou criticado.
O jornalista (ou qualquer pessoa que informe ou testemunhe um fato) tem no espírito que aquele fato foi visto por outras pessoas, com suas ideologias, crenças, interesses... o que fez com que um Nietzsche tivesse a oportunidade cínica de dizer "Não há fatos: só interpretações!". A dificuldade, a meu ver, é a de saber se a informação do fato considera todos os pontos de vista possíveis; sabendo que, ao me posicionar diante dele, estou influenciando uma determinada leitura e que escrevo (como diria Eco) para um leitor-ideal (abstrato), que não espero necessariamente que concorde comigo, mas que apresente os argumentos da contestação. Afinal, diziam os formalistas russos (V.Chlekov), toda nomeação (ou escolha de uma fato) já é interpretação!
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A frase sobre a "amizade" de Igor Maciel é também interessante.
Aristóteles achava que a causa final da POLÍTICA era a Amizade entre os homens. Na "Ética a Nicômaco", ele vê três formas da amizade: a Philia, a Ágape e Eros. A Philia era o que a Política deveria perseguir: uma espécie de empatia entre as almas com vistas à construção da Cidade e da vida comum. Ora, o jornalismo é um espaço público-político privilegiado, ao ponto de que, antes da Revolução Francesa, os jornais (as assinaturas individuais eram caras) e os Cafés (que tinham assinaturas de jornais para atrair clientes) eram o lugar onde as notícias eram lidas em voz alta (nem todos sabiam ler) e discutidas: jornais e cafés foram muito importantes na definição do "espaço público" (Kant) moderno, que não é a simples opinião vulgar ou o senso comum: ali estava sendo construída nossa noção moderna de República.
Ora, o espaço público é o lugar do confronto das opiniões divergentes (a democracia não é o Reino da Verdade Apodítica!), baseadas na palavra e na argumentação. A "dificuldade" do jornalismo está em, ao mesmo tempo, se constituir em espaço público (onde Aristóteles esperava alcançar a "Philia"), a constituição de um Bem Comum (hoje quase em extinção!) e as diferentes e conflituosas opiniões, que geram "polarização" política e ideológica. Nada fácil! O problema do jornalismo em estados totalitários é se pretender promotor e distribuídor da "Única" verdade (não é à toa que o maior jornal da antiga URSS se chamava Pravda, "A Verdade"!).
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No quesito "confiabilidade", proposto por Marcelo Rech, todo o problema se situa, exatamente, no conceito de... Verdade! Para os Gregos era a Aletheia (o desvelamento); para os Latinos, a Veritas (a fidedignidade do relato); para o Hebreus, a Anamnem (a fé depositada: "Assim seja"!); para os Modernos trata-se da verdade "correspondencial" (o que pode ser verificado, comprovado, provado). Arendt dizia que o contrário da Verdade não é a Mentira, mas a Falsidade! E Agostinho dizia que a Verdade é, sim, o contrário da Mentira, sendo a mentira o conhecer a verdade e negá-la ou deformá-la, algo tão comum hoje.
O problema é que nesse predicado da CONFIABILIDADE, está implicado os outros dois temas anteriores (Amizade e Dificuldade), na medida em que a confiança é um apanágio da amizade; mas amizade não é concordância incondicional: é quando o afeto me permite dizer ao amigo aquilo que os desafetos não podem (ou o amigo não quer ouvir!).
Mas, confiabilidade não é neutralidade. A que devo a confiança que eu deposito numa simples "informação"? Aliás, etimologicamente IN-FORMAÇÃO poderia ser entendida como a NÃO-FORMAÇÂO! Quer dizer, oferecer os fatos, um relato dos fatos, sempre vistos por alguém, repito, anula qualquer possibilidade de neutralidade axiológica. A FORMAÇÃO oferece os critérios (mesma origem de crivo, crítica, crise) que permitem o VER, OUVIR, AVALIAR, JULGAR e DECIDIR, predicados da subjetividade republicana e democrática.
Eu, pessoalmente, me sinto (mesmo que modestamente) com os pés em duas canoas: como educador profissional tenho o compromisso moral e político de FORMAR: oferecer os utensílios intelectuais e éticos para o exercício da autonomia judicativa (Julgar e Agir). E como colaborador desse JC, faço uso de um veículo de "INFORMAÇÃO" para divulgar possibilidades reflexivas e críticas que ultrapassam muito os limites de minha sala de aula. A FORMAÇÃO é aquilo que vem "depois" da EDUCAÇÃO (Goethe): nesta, os outros fazem para mim; naquela eu faço por mim mesmo.
Torço para que os artigos que escrevo nesse JC ofereçam aos leitores aqueles critérios modestos e provisórios que auxiliam a autonomia subjetiva numa época de manipulação generalizada do ataque à consciência crítica.
Vida longa ao Jornal do Commercio!
(Para Laurindo Ferreira)
Flávio Brayner é, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE