Construindo o abismo
O impacto das fake news na política contemporânea tem sido objeto de atenção de diversos atores institucionais e políticos há quase uma década.

Desde a vitória eleitoral de Donald Trump, no já distante ano de 2016, jornais, assembleias, congressos acadêmicos e, até mesmo, mesas de bar tornaram-se palcos de debates intensos sobre o papel da desinformação em massa naquele pleito.
Passados quase dez anos, algumas respostas sólidas foram encontradas sobre esse fenômeno comunicacional. Uma das conclusões mais relevantes é que as notícias falsas, isoladamente, não alteram diretamente o resultado de uma eleição nacional. A simples exposição de um conteúdo enganoso dificilmente modifica a intenção de voto de um eleitor. Estudos conduzidos pelos cientistas políticos Frederico Batista, Natália Bueno, Felipe Nunes e Nara Pavão demonstraram que o eleitor tende a ser resiliente diante da desinformação, mesmo em contextos eleitorais. Assim, é improvável que um apoiador de Bolsonaro mude sua escolha ao ser confrontado com uma sequência de fake news negativas sobre o candidato — o mesmo se aplica aos eleitores de Lula.
Mas se as fake news não possuem esse poder direto de persuasão, como explicar a percepção, tão presente na experiência cotidiana, de que pessoas mudam de comportamento ao consumir grandes volumes de desinformação política? Quantos não perderam o contato com familiares e amigos que mergulharam em bolhas ideológicas conspiratórias e radicais nos últimos anos? O que estaria por trás desse processo?
Algumas pistas estão em estudos clássicos sobre a mídia partidária nos Estados Unidos. Experimentos como o de Shanto Iyengar e Kyu Hahn evidenciam que o consumo de canais com viés ideológico, como a Fox News, pode intensificar o partidarismo entre eleitores já engajados. O próprio trabalho de Frederico Batista e seus colegas indica que, embora as fake news não alteram diretamente o voto, elas aprofundam o engajamento político de indivíduos previamente alinhados. Em outras palavras, uma notícia falsa que ataca Bolsonaro tende a reforçar a adesão de eleitores lulistas, e o mesmo ocorre no sentido oposto.
Apesar disso, ainda são escassas as pesquisas que se dedicam a compreender o que, exatamente, provoca essa reação. O que há de comum — ou de singular — nas notícias falsas que leva a esse efeito sobre os mais politicamente engajados? Para responder a essa pergunta, é necessário analisar essas peças de desinformação em seu estado bruto e em grande volume. Foi justamente esse o caminho que escolhi seguir durante o mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.
O desafio inicial consistia em encontrar uma base de dados robusta, com um número significativo de notícias falsas e verificadas, que permitisse a comparação entre os dois grupos. Felizmente, esse trabalho já havia sido realizado. Pesquisadores brasileiros, sob a liderança do professor Roney Santos, compilaram a base de dados Fake.br, com mais de sete mil textos provenientes de diversas fontes, contendo notícias falsas e verdadeiras, todas elas checadas por agências especializadas.
Para lidar com esses dados, utilizei softwares de análise automatizada de conteúdo, como o Iramuteq e o Legibilidade.com, com o intuito de comparar os dois conjuntos textuais. Essas ferramentas permitiram o exame detalhado de mais de oitocentas notícias falsas e verdadeiras, possibilitando a avaliação da frequência e distribuição de termos e expressões. Os resultados estão sistematizados na dissertação de mestrado "Feita sob medida: a estrutura de uma notícia falsa e seu papel no convencimento do eleitor", disponível no repositório da UFPE.
Os principais achados indicam que as fake news são, em média, sete vezes mais curtas que as notícias checadas. Além disso, apresentam maior densidade de adjetivos e verbos, geralmente empregados de forma pejorativa ou elogiosa a determinados líderes e atores políticos. Também se destacam pelo uso de linguagem simplificada e, portanto, mais acessível para o público em geral.
A descoberta mais reveladora surgiu a partir da comparação entre as fake news políticas com outras desinformações sobre temas diversos, como esportes, cultura e celebridades. Constatou-se que as peças com conteúdo político são ainda mais concisas e simples do que as famosas fofocas sobre o mundo dos famosos. Ou seja, as principais características das fake news se acentuam ainda mais quando o tema é política. Mas por que isso ocorre?
A resposta reside na verdadeira natureza das notícias falsas sobre política: são peças publicitárias. Diferente das fofocas, elas nem ao menos emulam o formato jornalístico. Isso porque os princípios que norteiam sua produção não seguem os critérios jornalísticos, mas sim os da propaganda política. O objetivo não é a precisão informativa, mas a simplicidade, a acessibilidade e, principalmente, a evocação de reações emocionais intensas.
Esse é o segredo das fake news: são concebidas, desde sua gênese, para promover a polarização. Buscam gerar engajamento e ação por meio da indignação, do ódio ou da exaltação. Não obedecem aos padrões jornalísticos tradicionais. Seus autores, mais próximos dos publicitários que dos jornalistas, querem vender algo: a completa rejeição àqueles que pensam diferente de você.
Por esse motivo as notícias falsas estão diretamente ligadas ao processo de polarização e acirramento político visualizado nos últimos anos. A construção de grupos extremistas, que cada vez mais rejeitam uns aos outros, passa pela disseminação desse tipo de conteúdo em canais de comunicação e grupos de pessoas engajadas politicamente, principalmente em mídias sociais. Compreender as bases desse fenômeno é um passo importante para o combate às notícias falsas e suas consequências para a política contemporânea.
Ulisses Melo, advogado (FDR-UFPE), mestre e doutorando em Ciência Política (PPGCP-UFPE)