Dayse de Vasconcelos Mayer: Os retornados no olhar de Aznavour
A corrida armamentista jamais garantirá a paz e a segurança. Ao contrário, agudizará os riscos e perigos de destruição à escala global

A Europa – e também Portugal – tem exagerado no uso da palavra rearmamento. A Presidente da Comissão Europeia - Ursula Von der Leyen – apresentou, recentemente, o “Livro Branco da Defesa” com um planejamento de gastos no montante de mais de 800 mil milhões de euros destinados a despesas militares. A decisão belicista revela a existência de um intenso nervosismo na Europa e o receio do agravamento da recessão democrática. Curioso é que em nenhum momento Von der Leyen revela preocupação com uma verdade inquestionável: a corrida armamentista jamais garantirá a paz e a segurança. Ao contrário, agudizará os riscos e perigos de destruição à escala global. Afinal, evitar conflitos sai menos dispendioso do que os provocar.
Mas, enquanto se fala no excesso de recursos financeiros para a Defesa da Europa, leio numa das manchetes do “Público” que os imigrantes brasileiros jamais enviaram tanto dinheiro para o Brasil. Foram, até agora, 414 milhões de euros. E o jornal completa: em 2023 existiam 368.449 cidadãos de nacionalidade brasileira a viver em Portugal.
No dia da leitura jornalística, eu havia assistido, no Corte Inglês, ao filme “Monsenhor Aznavour” interpretado por Tahar Rahim. O longa tende a provocar, nos mais atentos, uma reflexão sobre a questão migratória. De forma disfarçada, a biografia do lendário cantor, filho de armênios, revela as vicissitudes do estrangeiro e o objetivo (fim) maior de cada um deles: fazer fortuna. O saudosismo é o ingrediente mais delicioso do filme. Encrava-se nas canções “Je me voyais déjà”, Que c’est triste Venise”; “She” e “La Bohéme”.
Imprevistamente, o espectador se depara com a figura de Édith Piaf, interpretada pela extraordinária Marie-Julie Baup. A presença de Piaf revela os obstáculos encontrados pelo imigrante, os sacrifícios que lhe são impostos, as tensões entre a profissão e a família, o preço da solidão num contexto de risco ou adversidade, a existência de relações familiares asfixiadas, o mundo de roturas, de escolhas dolorosas e feridas abertas – observáveis e ocultas. A depressão, solidão, ansiedade são alguns exemplos do que se afirma. A imigração não foi explorada pelos críticos de cinema, embora seja o elemento mais denso a assinalar: o sentimento de pertença do imigrante que se dissipa aos poucos deixando uma espécie de vácuo. Roy Baumeister, Axel Honneth, Mark Leary debruçaram-se, verticalmente, sobre o assunto revelando que a resiliência e o pertencimento impõem o debate de questões de ordem cultural e o enfrentamento de problemas cada vez mais complexos ou difíceis de contornar.
Essas considerações sobressaíram durante o mês de março quando voltei a Portugal. Nesse país – que também é meu por opção - encontrei brasileiros trabalhando em cafés, restaurantes, hotéis, táxis, Uber, salões de beleza, lojas de perfumes. Também matriculados em cursos de pós-graduação em diferentes Universidades. A conversa breve com alguns permitiu a anotação do não desejo de retorno ao Brasil.
Possivelmente, pelos obstáculos encontrados no lugar de nascimento, nossos emigrantes não se permitem a discussão da cultura do exílio. Vivem, grosso modo, em bolhas que se formam com a juntura natural de iguais. Isso acontece em qualquer país acolhedor. Outro aspecto a sublinhar diz respeito à anuência, sem discussão mais profunda, do slogan: “os brasileiros representam um contributo importante para a economia de Portugal”. E têm razão. Portugal é o segundo Estado-membro – após a Suécia – que mais defendem a entrada de estrangeiros. Todavia, tal percepção não é desprovida de um “se”. Embora os portugueses afirmem que não são racistas, 51% dos brasileiros têm sido recusados, nomeadamente nos últimos tempos.
A justificativa é complexa: eles roubam empregos, fazem baixar os salários e cometem delitos graves. O crime organizado associado ao tráfico de drogas, por exemplo, está muito vinculado ao fenômeno migratório. No dia 1º, a Folha de São Paulo divulgou parte do Relatório Anual de Segurança Interna. Marcava um crescimento considerável de brasileiros barrados na chegada a Portugal. Eram 179, em 2003. O número subiu para 1.470 em 2023, um aumento de 700%.
Mas não se deve confundir a situação dos exilados em Portugal, por razões econômicas, com o estatuto dos nossos ricos ou influentes. Esses estão adquirindo apartamentos e mansões luxuosas para residência com caráter não estável. A maioria vem usando a ponte aérea Brasil/Portugal/Brasil de forma continuada para realização de palestras, congressos e outros eventos.
Uma reflexão final sobre o filme de Aznavour e o sentimento de pertença permite a recordação de que aos 94 anos - e isso o filme não mostra - o ícone da canção francesa realizou uma grande apresentação em Erevan (ou Yerevan), capital da Armênia. Sentados na primeira fila estavam o presidente armênio Robert Sedraki Kocharian e o presidente francês Jacques Chirac. Era o retorno do homem às suas raízes. Depressa, Aznavour poderia dizer que “tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro” (Fernando Pessoa). Eis que chegou, mesmo tardiamente, a hora do regresso.
Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciência jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa.