Flavio Brayner: O fim de uma ilusão?
Para nos construirmos como Nação, fomos obrigados a fabricar mitologias, sem as quais seria impossível simplesmente vivermos juntos

Todos nós precisamos “mentir” para nós mesmos, seja como “mentira” individual seja como coletiva. E não se trata de um ódio ou de um medo qualquer pela verdade, mas de um mecanismo sutil de proteção contra nossos monstros internos, uma autoilusão que Freud chamou de “racionalização”. Ou para construir passados e projetos comuns com o sentimento de pertencer a uma “comunidade”, o que podemos chamar de “mito”.
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, no livro Raízes do Brasil, dizia que nós, brasileiros, sofremos de uma doença chamada “bovarismo”: o mal hábito de tomarmos por real aquilo que é apenas projeção ou imaginação que alimentamos sobre nós mesmos! O nome vem de Madame Bovary, aquela personagem de Flaubert que, mergulhada em leituras românticas, projetou sobre a própria vida ilusões amorosas que, ao final, mostraram-se fatais.
Para nos construirmos como Nação, fomos obrigados a fabricar mitologias, sem as quais seria impossível simplesmente vivermos juntos. Deixem-me lembrar alguns destes mitos: o mito da “união das três raças” para expulsão do invasor e emergência de um sentimento nacional.
Trata-se de uma balela construída, no século XIX, pelos institutos históricos e geográficos para criar um “marco fundador” artificial da Nação. O mito do “Herói da Liberdade” (Tiradentes): outro mito criado posteriormente, no momento em que a República precisou de uma reencarnação heroica representativa de nossa suposta altivez (Tiradentes disputou o posto com Frei Caneca, que perdeu pelo seu radicalismo jacobino!).
O mito do país “pacífico” e avesso a guerras. Outra balela: o que o Brasil fez na Guerra do Paraguai, como vassalo dos interesses comerciais ingleses, foi um inominável genocídio contra um país que teve, depois da guerra, de “importar” homens para procriar e impedir seu fim como povo! O mito do “Pacificador”: a única paz que Duque de Caxias realmente apreciava era a dos cemitérios, visto a brutal violência que praticava contra qualquer separatismo provincial.
O mito gilbertiano da “democracia racial” (imediatamente criticado pelo próprio Sérgio Buarque em 1934) que alimentou a ilusão sobre nós mesmos de que nosso passado escravista e patriarcal, no fundo, tinha servido a algo de bom: uma sociedade de hábitos brandos, original e plástica. O mito do “brasileiro bonzinho”, avesso à violência, simpático e acolhedor dos estrangeiros. O mito da “cultura popular”: a ideia de que é no “povo” (e, sobretudo, na cultura popular nordestina) que reside a resposta para a construção de nossa mais funda identidade nacional.
Penso que este momento de “crise” pela qual estamos passando, não é somente “política” ou “ética”: estamos sendo defrontados com nosso bovarismo, percebendo que não somos aquilo que imaginávamos ser e vendo revelada a sociedade violenta, racista, hierárquica, corrupta, antirrepublicana e avessa à democracia como modo de vida. Finalmente!
*Flavio Brayner, professor da UFPE