OPINIÃO | Notícia

Não é pelo batom

Não existe ameaça comunista a ser enfrentada. Nem estamos na guerra fria. Também não foi um passeio no parque

Por GUSTAVO FREIRE Publicado em 31/03/2025 às 1:05 | Atualizado em 31/03/2025 às 7:40

Na quadra contemporânea, em que as obviedades precisam ser repetidas a toda hora, não somente é previsível, como adequada, a resposta judicial à responsabilização penal dos partícipes da maquinação, organização, financiamento, invasão e depredação das sedes dos três Poderes no domingo 8 de janeiro de 2023, e o contexto mais amplo que a embala. Tudo dentro do previsível. As denúncias do Ministério Público Federal têm sido recebidas e não são ineptas.

Não se trata de estigmatizar gente comum como a até então anônima que usou de um batom para pichar a estátua da Justiça de Alfredo Ceschiatti, em frente ao prédio do Supremo, nem da família patriota que resolveu naquele dia passear de bíblias ou bandeiras em mãos clamando por um País melhor. Não existe ameaça comunista a ser enfrentada. Nem estamos na guerra fria. Também não foi um passeio no parque.

O que existiu foi uma tentativa de golpe de Estado, núcleo punível do tipo (entre outros crimes em concurso, com penas mínimas significativas), não o golpe em si, até porque, se golpe tivesse existido, seus vitoriosos é que estariam a contar a história, não nós.

No ano de 1972, na Itália, um homem desarmado e sem explosivos escalou o altar da Basílica de São Pedro, em Roma, e desferiu quinze marteladas na escultura Pietà, de Michelangelo. Na hora gritou: "Eu sou Jesus Cristo!", antes de destruir parte do rosto e do braço da imagem da Virgem Maria. Ninguém foi às ruas pugnando por sua anistia. Ninguém tirou por menos. A opinião pública percebeu que a discussão transcendia a escultura secular. Quando fazemos o recorte para o Brasil daquele 8/1/2023, é a mesma coisa.

Ninguém praticou delitos de bagatela, nem traquinagens, mas um somatório de crimes sérios, cujas penas se unem em concurso, tal e qual como determina a legislação. É uma dosimetria excessiva? Para quem entende que é, então que procure o seu congressista eleito para pressioná-lo a apoiar uma modificação da lei substantiva. O que não tem cabimento é o STF ignorar as regras do jogo.

Quem invadiu as sedes dos Poderes, assim como quem forneceu recursos ou outros meios de ajuda para tamanho absurdo enfrenta as consequências do tipo de cidadão que escolheu ser. Não houve coação ou induzimento. As pessoas saíram de casa com a intenção de colaborar para que estivessem postas as condições para um golpe de Estado. Não se trata simplesmente de um batom.

Ninguém aqui furtou um pacote de biscoitos no mercado por sentir fome. O iter criminis (caminho do crime) demonstra a rejeição desde o encerramento das eleições de 2022 à alternativa escolhida pela maioria. Externaliza, ainda, a contestação como fraudulenta da confiabilidade das urnas eletrônicas, o que nunca foi demonstrado, além do envolvimento em movimentos para pressionar as Forças Armadas a intervirem.

Para recebimento da denúncia, o Código de Processo Penal (art. 41) requer, entre outros aspectos, a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Exige indícios mínimos de autoria, o que é distinto do conceito de prova cabal. A certeza da autoria será confirmada ou afastada durante a instrução probatória, impondo-se na fase de oferecimento da denúncia, o princípio do in dubio pro societate e não o do in dubio pro reo. Funciona assim, bem desse jeito, há pelo menos oito décadas entre nós. Por consequência, a Primeira Turma do STF não reinventou a roda. E ninguém é criança.

Os denunciados pelos acontecimentos hediondos do domingo 8 de janeiro de 2023 respondem por múltiplos crimes e não por um só. Por isso insustentáveis as narrativas que relativizam o que houve: seja a de quem sustenta que tudo foi uma encenação, seja a de quem afirma que há uma mega perseguição em andamento contra os reais democratas. Rasga a Constituição não aquele que a invoca para proteger a democracia e seus fundamentos. Rasga a Constituição quem dela lança mão, com as mais inflamadas juras de amor, para no fundo sabotá-la.

Concluo citando Laurentino Gomes: “O Brasil acostumou-se a ser um país de salvadores da pátria, de soluções milagrosas, isso é típico de uma monarquia. Mas numa democracia republicana quem resolve nossos problemas somos nós”. Que venha a hora da verdade.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

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