OPINIÃO | Notícia

Ivanildo Sampaio: Lembrai-vos do Padre Henrique

Será prestada homenagem na FDR à memória de Cândido Pinto de Melo, líder estudantil dos anos sessenta, que ficou paraplégico aos 21 anos

Por Ivanildo Sampaio Publicado em 30/03/2025 às 7:00

 Alunos da Faculdade de Direito do Recife vão, ainda este mês, prestar homenagem à memória de Cândido Pinto de Melo, líder estudantil dos anos sessenta, que ficou paraplégico aos 21 anos, por conta de um atentado político executado nos tempos difíceis da ditadura militar. Esse atentado ocorreu no bairro da da Torre, em abril de 1969 – e se atribui sua autoria ao Comando de Caça aos Comunistas, uma instituição surgida no submundo da violência e formada por filhos de usineiros, que, na época, ainda tinham alguma força no mundo político e econômico do Estado. Um mês depois, esse mesmo Comando de Caça dos Comunistas seria também acusado de sequestrar, torturar e assassinar o Padre Antonio Henrique Pereira Neto – ou simplesmente o Padre Henrique – abandonando o corpo num terreno baldio na periferia da Cidade Universitária.

O Padre Henrique era um assessor próximo de Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife. Não era conhecido fora do seu ambiente, trabalhava junto aos jovens sob a orientação do Arcebispo. Mas, Dom Helder já era conhecido internacionalmente e odiado internamente pelos novos donos do Poder. Ele revelava e condenava, aqui e la fora, as prisões arbitrárias, as torturas, o desaparecimento de adversários do regime militar e tantas outras arbitrariedades, que o colocavam como um dos nomes da sociedade civil mais odiados pelo novo regime. Assassinar o Padre Henrique significava mandar um recado ao Arcebispo.

Acompanhei, desde o momento em que o fato se tornou público, a triste e breve história do Padre Antonio Henrique Pereira de Melo, cujo assassinato nunca ficou claramente esclarecido, a não ser que teve o apoio e provavelmente a participação direta da ditadura que se instalara no País Repórter da Editora Bloch na Sucursal do Recife, escrevi três reportagens sobre a morte do Padre; as duas primeiras para a revista Fatos & Fotos – a última para a Manchete, na época a mais importante revista ilustrada do País, com uma tiragem acima dos 400 mil exemplares semanais.

As primeiras informações dando conta de que um corpo não identificado, com sinais de tortura, havia sido encontrado nas imediações da Cidade Universitária foram publicadas em notas simples, “de pé de página”, nos dois principais jornais locais – Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco.O primeiro de propriedade do empresário F. Pessoa de Queiroz, na época Senador da República; o outro, da grande cadeia dos Diarios Associados, de Assis Chateaubriand. Vale dizer que, na época, a censura já atuava forte sobre os meios de comunicação, mas alguns jornais, apoiadores do novo regime, aqui e la fora, faziam eles mesmo a sua própria censura.

No entanto,desde os primeiros momentos soube-se que o corpo encontrado e recolhido ao IML era de um jovem padre, auxiliar direto do Arcebispo de Olinda Recife, que trabalhava com os jovens. E se tentou refazer seus últimos passos, antes de ser cruelmente assassinado. Suas ultimas atividades como pároco ocorreram na noite do dia 27 de Maio de 1969, no Largo de Parnamirim – onde foi visto com vida pela ultima vez. Tres homens o levaram numa Rural Willis verde, o mesmo veículo que conduzia os criminosos que atentaram contra Cândido Pinto.

No dia seguinte, Henrique era um exemplo do que podem as ditaduras; um corpo sendo velado numa missa de corpo presente na Igreja do Espinheiro; uma demonstração da coragem de Dom Helder Câmara para realizar o seu enterro, no distante e discreto Cemitério da Várzea; um exemplo da negligência do Estado, jamais condenado legalmente pelo crime. E muitas perguntas jamais foram esclarecidas:

A quem pertencia a Rural Verde? Quem eram as pessoas que conduziam o veículo? A Policia Civil de Pernambuco esteve envolvida? Quem eram os integrantes do Comando de Caça aos Comunistas em Pernambuco? O Comando Militar do Nordeste – na época, IV Exercito – esteve envolvido? A Comissão dos Mortos e Desaparecidos remexeu, pesquisou, perguntou e inquiriu, mas também não sei se acusou alguém.

Na Igreja do Espinheiro, totalmente lotada, coube a Dom Helder, como se previa, celebrar Missa de Corpo Presente e acompanhar o corpo desde ali até o Cemitério da Várzea, na carroceria de um caminhão e com as forças policias pela frente, tentando deter o cortejo. Acompanhei de perto essa longa caminhada, que se arrastava lentamente, passo a passo, temeroso de que, de um momento para outro, acontecesse uma tragédia.Por várias vezes, os militares ordenavam que o cortejo parasse, e Dom Helder, de voz grave, ordenava que seguisse em frente. E lentamente continuava. Na Ponte da Torre, um piquete: militares armados formavam uma barreira e ordenaram que o cortejo parasse. Muitas pessoas, por precaução, não se arriscaram. Dom Helder tomou a frente e mandou que o seguissem.

Cerca de cinco horas depois, cansados, mas inteiros, chegamos ao ponto final do percurso. Era fim de tarde, o sol começava a se esconder no horizonte. Dom Helder não permitiu qualquer discurso, manifestação, protesto. Alguém começou a cantar, baixinho, o Hino Nacional. Outras vozes acompanharam e de repente toda aquela multidão era uma voz só. Padre Henrique foi assassinado em maio do mesmo ano, talvez mesmo grupo que atentou com o estudante.

Cândido formou-se e fez carreira no mundo jurídico, escreveu sua historia e está sendo homenageado, agora, por ex-colegas, na Faculdade De Direito do Recife, de cujo diretório estudantil foi Presidente. Henrique quase não recebeu homenagens, não foi roteiro um filme premiado em festivais, não teve sua morte assumida pelo Estado, não sei se algum dia a sua família recebeu qualquer tipo de reparação.

Louve-se a Comissão que pesquisou nossa história recente levantando nome e número de pessoas desaparecidas durante a ditadura. Mas, Lamentavelmente, jamais saberemos quem foram os assassinos do Padre Antonio Henrique Pereira Neto, apenas uma cova perdida Num cemitério triste num subúrbio do Recife. E isso não é justo.


Ivanildo Sampaio é jornalista

 

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