Maria Tereza Paraguassú Martins Guerra: O médico e o jornalista - como a imprensa reflete e influencia a prática médica do seu tempo
Torço para que a imprensa atual se inspire em Rensberger e seu artigo. Entretanto, minha esperança é amortecida cada vez que acesso um grande portal

Em 1972, Boyce Rensberger publicou um artigo no The New York Times com suas apurações sobre a prática médica pouco ortodoxa de Max Jacobson, mais conhecido entre os ricos e famosos da época pela alcunha de “Dr. Fellgood”. O médico alemão radicado nos Estados Unidos possuía uma lista de pacientes composta por políticos, industriais, artistas e jet-setters. Seu paciente mais proeminente foi John F. Kennedy, mas seu portfólio de VIPs incluía dezenas de personalidades famosas que influenciavam seus nichos e ditavam tendências. Marilyn Monroe, Frank Sinatra e Elvis são apenas alguns exemplos.
Após a publicação do artigo, seguiu-se uma investigação e o médico perdeu sua licença em 1975. Mas afinal, o que ele fazia de tão errado? A própria investigação teve dificuldade em mensurar o tamanho do problema, já que ele praticava uma espécie de “medicina personalista”, ou seja, executava protocolos próprios, com as mais variadas substâncias, que só estavam registrados em sua cabeça. Seus coquetéis injetáveis eram misturas aleatórias de anfetaminas, hormônios, barbitúricos e qualquer coisa que ele julgasse benéfica para o caso em questão, desde medula óssea até extratos de placenta.
Reparou que usei o termo “medicina PERSONALISTA” e não “medicina PERSONALIZADA”? É que a despeito de todo o processo parecer exclusivo e artesanal, os mesmos shots eram utilizados para tratar desde falta de disposição até doenças potencialmente graves e fatais, como a esclerose múltipla. Oferecer um serviço personalizado é atender às particularidades do paciente e definitivamente não era isso o que acontecia. A prática médica se baseava nas crenças individuais do médico e na aura de autoridade intelectual que ele criava através de uma PERSONALIDADE peculiar e eloquente.
O artigo traz relatos de pacientes que evoluíram com toda sorte de complicações, desde quadros depressivos e psicóticos até a destruição de suas vidas pessoais e profissionais, em alguns casos, com desfecho fatal. Por mais que sua prática tenha afetado negativamente a saúde física e mental de muitas pessoas, nada se comparou ao risco que ele fez toda a humanidade correr em junho 1961. Kennedy o levou em sua comitiva para o Summit de Vienna, onde encontraria Nikita Khrushchev, então líder da União Soviética, para discutir a relação entre as duas superpotências no auge da guerra fria (apenas seis semanas após a fracassada invasão à Baía dos Porcos). Há quem pondere o quanto o abuso de substâncias pode ter afetado a capacidade de julgamento e ponderação do presidente americano e o quanto isso poderia ter contribuído para seus sucessivos fracassos no trato com Cuba e a União Soviética.
A charlatanice sempre existiu e é mais antiga que os cursos de medicina. A questão é que, antes do advento das redes sociais, a via mais eficiente para que alguém ascendesse nesse caminho era se associar a figuras de destaque, de preferência do meio político. Criei essa teoria ao perceber que Kennedy tinha Max Jacobson, Hitler tinha Theodor Morell e Nicolau II tinha Rasputin. Pode soar paradoxal que homens tão poderosos tenham escolhido conselheiros de saúde com práticas tão questionáveis, mas também proponho uma explicação para isso. Figuras de poder ou indivíduos altamente pressionados não fazem suas escolhas pautados pela lógica ou pelas evidências, mas sim pelos seus anseios e pelas promessas que são colocadas sobre a mesa… e prometer é a especialidade do charlatão.
Em 2025, 53 anos depois do artigo investigativo de Rensberger, para ter sucesso, um galeno heterodoxo não precisa ser necessariamente médico do maior mandatário do seu país; ele pode abrir uma conta no Instagram e, com meia dúzia de estratégias de marketing, escalar a sua voz, seus produtos e suas crenças.
Em 2025, 50 anos após Max Jacobson perder sua licença médica, a freguesia da charlatanice não se resume a políticos, artistas ou endinheirados. Hoje, devido às vicissitudes da vida moderna, qualquer cidadão comum está sujeito a gatilhos ou demandas que o impingem a buscar soluções tão miraculosas quanto arriscadas. As vicissitudes a que me refiro estão intimamente ligadas à superficialização e ao empobrecimento dos vínculos interpessoais, à crescente volatilidade das relações de trabalho e às exigências cada vez mais elevadas de um mundo cada dia mais incerto. Ou seja, hoje em dia, qualquer cidadão pode estar sujeito a um grau de estresse que antes só era observado em políticos, gestores com elevado grau de responsabilidade, esportistas ou profissionais do campo criativo.
Torço para que a imprensa atual se inspire em Rensberger e seu artigo do NYT. Entretanto, minha esperança é amortecida cada vez que acesso um grande portal de notícias e vejo anúncios de procedência duvidosa, dizendo que clicando ali você vai encontrar a cura para a calvície ou para o diabetes mellitus.
Tenho observado colunas com críticas a cultura da pressão estética dividindo o mesmo espaço com matérias que exaltam corpos claramente construídos à base de esteroides anabolizantes e procedimentos invasivos. Periodicamente me deparo com publicações jornalísticas ressaltando o “abdômen trincado” ou a “harmonização” de alguma celebridade. A recorrência desse tipo de conteúdo e os métodos de propaganda dessa indústria me remetem à ideia de que estamos frente a um fenômeno social, que apesar de não ser novo, nunca esteve em grau tão disseminado e alarmante.
Funciona como uma corrida do ouro, mas em 2025 o metal mais precioso se chama “imagem”. Na busca desenfreada pela imagem perfeita, pessoas se lançam em terrenos inexplorados, submetem-se à insalubridade na busca da magreza, de músculos, de performance. Como aquilo que buscam é inatingível, até por ser um conceito subjetivo e mutável, a corrida não tem fim. Na estrada da vulnerabilidade, o GPS é o canto das sereias e há muitos alquimistas oferecendo rituais de transmutação com imagens de “antes e depois”.
Estórias e analogias à parte, entendo que os meios de comunicação devem prezar pela pluralidade, no que tange à informação e no que tange à captação de público. Entretanto, quando algo se torna um gatilho ou item de propaganda para uma cultura danosa, que já se tornou caso de saúde pública, precisamos escolher um lado, a procedência dos anunciantes, uma linha editorial e, acima de tudo, refletir sobre o papel de cada um no enfrentamento (ou no fortalecimento) da problemática.
Maria Tereza Paraguassú Martins Guerra, médica