Dayse de Vasconcelos: Quaresma. Tempo de penitência e reflexão sobre a "melancolia democrática"
A grande verdade é que nenhum governante possui o direito de decidir o que deve ou não ser publicado pela imprensa. Direito de comunicação é via dupla

Nessa viragem do milênio. uma onda de inversões democráticas afetaram distintas esferas públicas: as tentativas de golpe; o trucidamento da natureza; as autocracias e ditaduras malsãs; as teias de favorecimento; a vaga de populismo e direitismo; as barganhas mafiosas para domínio do planeta; a conversão dos EUA em superpotência do lucro... Discutiremos apenas as tentativas recentes de implosão da imprensa principiando por Trump, no momento em que barrou o ingresso de dois jornalistas da “Associated Press” na Casa Branca. A motivação integra o orbe dos disparates políticos: os jornalistas insistiam em escrever “Golfo do Pérsico” em vez de “Golfo da América”.
Convém lembrar que as idiossincrasias do Presidente são antigas. Lembram-se da famosa frase pronunciada em 2016, num comício no Texas? “Oh! Se eu for Presidente os “media” vão ter problemas! ”. E, no segundo mandato: “A imprensa constitui o grupo mais desonesto, apavorante e falso do planeta. Ganharemos muito dinheiro processando os meios de comunicação”.
Tais incongruências foram se propagando pelo mundo e amealhando alcunhas: journalopes na França (junção de jornalista e salope que é uma gíria equivalente à prostituta, vagabunda ou galdéria (va bien t'faire enculer, salope). Já os “media recebem a denominação de merdia. Na Itália, os profissionais de imprensa são conhecidos pelo vocábulo “sciacalli” ou chacal; nos EUA trumpista, encontramos “garbage” ou lixo. Em resumo, na Europa e nos EUA os jornalistas passaram à categoria de escumalha, mentirosos e profissionais do mal.
Convém não esquecer que em 2017 um grupo de psiquiatras norte-americanos enviou uma carta ao “New York Times” revelando que a instabilidade emocional de Trump o tornava incapaz de servir como Presidente. O mesmo sucedeu com John Gartner, docente da Universidade John Hopkins, quando pediu o afastamento de Trump alegando que ele era possuidor de transtorno de personalidade paranoide e narcisista, algo semelhante à personalidade de Hitler.
No que se refere às medidas judiciais contra os “media”, galvanizadas pela máquina de propaganda, o fato não é recente. A Turquia de Erdogan, em 2010, multou em 2.5 mil milhões de dólares o “Dogan Holding”, detentor de três canais de televisão generalistas (Kanal D, Star TV e CNN Türk), alguns canais de televisão temáticos e uma agência noticiosa sob acusação de evasão fiscal; a Venezuela de Hugo Chávez abriu uma investigação para apurar irregularidades financeiras de Guillermo Zuloaga, dono da Globovision, considerado o único canal aberto de linha independente no país; o presidente do Equador, Rafael Correa, foi vitorioso num processo judicial no valor de 40 milhões de dólares, contra o editor do “El Universo”, um dos maiores jornais diários, fundado em 1921. E o que sucede no Brasil? Tudo indica que o Executivo e o Judiciário se irmanaram no objetivo de aprovar restrições, nomeadamente nas redes sociais.
O presidente Lula vem apertando o cerco sobre o Congresso na tentativa de eliminar o que chama “ameaça das plataformas”. Mas ainda não chegamos ao exagero de tripudiar dos “media” e dos jornalistas ou fazer implodir a liberdade de expressão. A grande verdade é que nenhum governante possui o direito de decidir o que deve ou não ser publicado pela imprensa. Afinal, o direito de comunicação, que não é absoluto, é uma via de mão dupla. As palavras, frases, opiniões podadas pela censura têm sempre o efeito bumerangue.
Cumpre salientar que o Judiciário brasileiro, não obstante a retórica da liberdade de expressão, tem se manifestado de modo pouco virtuoso acerca do abuso da imprensa. Alguns juízes insinuam que é necessário ingressar com ações contra os excessos dos “media”. A palavra “excesso” está muito bem colocada quando as críticas se referem aos supersalários de magistrados e as justificativas pífias que os favorecidos registram: “Não são de fato textos jornalísticos, mas “uma investida mentirosa que incita a raiva direcionada ao Poder Judiciário”. Lygia Marla, colunista da “Folha de São Paulo”, escreve a esse respeito: “o que causa indignação é magistrado, num estado democrático de Direito, propor solapar a liberdade de imprensa para evitar críticas a um mecanismo que autoriza ganhos suntuosos a uma casta da sociedade” (Para criticar um juiz basta deixá-lo falar).
A articulista faz referência a um desembargador do Tribunal de São Paulo que se ampara no excesso de trabalho da classe, sem nenhuma alusão ao número de assessores que compõe seu gabinete. A resposta da profissional é direta: “o desembargador usa falácia retórica ao insinuar que a cobertura da imprensa, contém ‘fake news’ porque não indica que os benefícios estão previstos em lei. Mas penduricalhos são questionados justamente por serem um artifício legal que permite remunerações acima do teto do funcionalismo (R$44 mil) ”. Enfim, a liberdade de expressão embora não seja um direito absoluto, é um pilar fundamental da democracia. Ela torna exequível a tomada de decisões justas, livres e conscientes. É uma pena, portanto, que estejamos a passar por uma fase abjeta de “melancolia democrática”.
Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas pela FDL