Não, não foi somente um Oscar
Eunice Paiva, em "Ainda Estou Aqui", interpretada pela formidável Fernanda Torres, lutou por essa conscientização depois de ter o esposo Rubens

Caio Fernando Abreu advertiu, com a visceralidade de estilo, que “algumas coisas do passado são lições para refletir, não para repetir”. Agregando à sentença o meu de acordo, tenho comigo, na atual quadra, que a merecidíssima conquista do Oscar 2025 de melhor produção internacional por “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles Júnior, ratifica como poucas coisas o conselho do autor de “Inventário do Irremediável”.
Para além de um troféu, o Oscar, ao premiar uma produção como essa se convola em manifesto de repulsa ao ódio. Só não entende quem não quer. As gerações mais jovens precisam compreender, para que não acabem reféns de uma eterna lavagem cerebral, o quanto a opção pela democracia deve ser sempre a única, por maiores que se anunciem seus obstáculos e até imperfeições.
Eunice Paiva, personagem-chave de “Ainda Estou Aqui”, interpretada pela formidável Fernanda Torres, lutou por essa conscientização depois de ter o esposo Rubens (o não menos talentoso Selton Mello), ex-Deputado Federal, arrancado de si e da família pelos agentes da ditadura. Assim como Eunice, muitas outras mães, esposas e filhas cujos entes queridos sumiram nos porões da repressão e nunca mais se soube que fim levaram, não se calaram. Suas vozes são insufocáveis.
Com a qualidade e a cadência da informação de que hoje se dispõe graças à internet, separando-se o fato e o boato, chega a ser uma violência à parte perceber como em sã consciência alguém no pleno domínio da sua capacidade pode preferir a volta ao retrocesso autoritário. Não é questão de antipatizar com as ideias da esquerda; é questão de humanidade básica. Governos eleitos não devem ser trocados na força, mas no voto.
Discordâncias políticas não devem ser contrapostas na violência, mas no argumento honesto. Ditaduras são sofrimento, nunca prenúncios de um futuro melhor.
Veja-se o que foi feito de Rubens Paiva. Em uma manhã de janeiro de 1971, agentes de segurança à paisana bateram à porta da casa à beira-mar do ex-deputado no Rio de Janeiro. Colocado em seu carro, levaram-no sob escolta armada e ele nunca mais foi visto, deixando esposa e cinco filhos para cuidar de tudo. Era terrorista, ladrão, falsário? Não, nada disso. E ainda que o fosse, qualquer desses epítetos, só poderia perder a liberdade pelo devido processo legal, com ampla defesa.
Rubens Paiva, de formação, era engenheiro civil. Seu “crime”, aparentemente, foi o de ter servido como intermediário entre exilados políticos brasileiros no Chile que se correspondiam com parentes e familiares aqui. Os restos mortais do ex-parlamentar jamais foram encontrados, nem ninguém foi responsabilizado por
seu assassinato ou desaparecimento forçado, o que se atribui à controversa Lei de Anistia de 1979.
Eunice Paiva nunca se permitiu o recolhimento conformista. Pressionou, não esmoreceu. Sem suas décadas de perseverança e o rastro de documentos que deixou em sua campanha para encontrar o marido, a sociedade brasileira talvez nunca tivesse superado a versão oficial do caso – a de que Rubens teria sido sequestrado por terroristas ou que fugiu.
Em um ambiente perigoso como o de uma ditadura, Rubens Paiva sabia que era impossível nada fazer diante dos horrores e das mentiras. Por isso, como escreveu Joana Tavares em lindo texto para o site Brasil de Fato (26/11/2024), “doeu tão intensamente ver o momento em que Eunice percebe que perdeu tudo aquilo.
Não só a casa, o dinheiro, o Rio de Janeiro, o lugar social, as festas, o convívio com os amigos, a família completa, mas perdeu aquele amor”. Eis o que fazem as ditaduras, senhoras e senhores. Exterminam amores.
O filme de Walter Salles Júnior retrata uma Eunice que aprendeu a se refazer, que foi mãe e pai, que estudou e se reinventou em nova profissão e que se devotou à defesa dos povos indígenas. Uma mulher que continuou, como anota Joana Tavares, sorrindo, não deixando a ditadura lhe levar tudo, mantendo a
alegria como trincheira da resistência.
Quem conhece o amor e se educa a dele cuidar e a proteger dos seus algozes, festejará sem dia para acabar este Oscar. Pois que siga a justa premiação a gerar outros frutos marcantes. Viva a democracia. Viva a família Paiva. Anistia jamais.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado