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Marcelo Mário de Melo: Utopia fora

Política é o território do realismo mais cru. É um palco de guerra global composta de etapas diversas e batalhas diárias corpo a corpo e mente a mente

Por MARCELO MÁRIO DE MELO Publicado em 03/03/2025 às 15:58

Utopia é uma coisa muito boa no terreno da ficção e seus encantamentos de arte. Ressaltando situações, relações e atitudes onde tudo é movido pela harmonia, a justiça e a perfeição. Com esses mergulhos a gente se encanta, relaxa e se reanima para andar melhor sobre as pedras duras da vida.

Até aí, tudo bem. Mas utopia no dia a dia, principalmente quando se trata de política, é uma desgraça. Porque a política é o território do realismo mais cru. É um palco de guerra global composta de etapas diversas e batalhas diárias corpo a corpo e mente a mente. E aí, não é bom recorrer a ficções e realidades imaginárias.

E os sonhos? Ora, que se sonhe à vontade, sonhos próximos e distantes em torno de objetivos grandiosos. Mas alimentando esses sonhos com os tijolos e as pedras práticas do dia a dia. Juntando fios soltos. Abrindo janelas de luz.

Procurando unir vaga-lumes e estrelas. O que não tem nada a ver com utopia. Porque utopia é desenho de coisa pronta. Preconcebida. Inevitável. Perfeita. Paradisíaca. Alheia às exigências, ignorâncias, surpresas, incompletudes e imperfeições da vida real e das pessoas reais. Razões por que precisamos manter a mente antenada. Com os dedos nas feridas. Olhando frontalmente e protegendo os olhos contra réstias de utopia.

Ideal utópico, superperfeito, gera a categoria dos seus arautos. A que se atribui sumos de perfeição a serem disseminados. Colocados acima dos simples mortais.

Quando esse imaginário penetra no espaço da militância política, o descaminho é grande. Erigem-se e se agigantam os pais da pátria, os grandes mestres, os todo-poderosos chefões acima do bem e do mal.

Como detentores das tábuas da lei. Essa militância sacralizada pega carona nos cacoetes das religiões e das seitas e suas hierarquias de apóstolos. Estes, em tese, sintonizados e em linha direta com as pulsações do mais além, elaboradas e corporificadas na alta cúpula.

Ora, para uma pessoa ter uma consciência militante, alimentando o ideal de uma sociedade onde prevaleçam, em lugar do lucro sobre o ser, a liberdade, a justiça, o respeito, a preservação do meio ambiente e todas as formas, de vida, não é necessário recorrer a utopílulas, como uma espécie de cartão de crédito com saldo ilimitado e sem juros.

A partir de uma consciência universal e indo além do imediatismo, precisa ter a clareza de que a vida individual é contada ano a ano e o processo histórico por décadas e séculos, sendo insuperável essa diferença de extensões.

Saber que sempre começamos a atuar sobre um processo já em andamento há séculos, que prosseguirá além de nós, nos séculos seguintes. Não esquecer que o lugar onde atuamos está relacionado a uma cadeia internacional de causalidades e acasos que nele repercutem.

Lembrar-se de que fatores desconhecidos atuam e procurar ter olhos atentos ao novo. Empenhar-se em harmonizar os anseios gerais e as pulsações umbilicais. Lançar sementes do lado libertador e igualitário, resistindo por toda a vida, independentemente dos altos e baixos das conjunturas.

Guarnecendo-se assim, não há por que se recorrer às miragens cor-de-rosa de um futuro perfeito, tecidas em linhas de utopia. O futuro é um espaço em aberto. E aos que sonham com um futuro melhorado, cabe fazer o melhor possível no presente, aqui e agora, neste sentido.

O resto é adivinhação. Ou utopização. Ladeira fácil de descer numa sociedade com tanta tradição religiosa, que faz chegar, suas águas, até, em territórios ditos ateístas e outros “istas” com emblemas materialistas.

Pela sua impropriedade, utopia é uma coisa completamente excluída do meu vocabulário e da minha vida. E não dou choque elétrico quando ouço falar de utopia, porque já passei muita fita isolante na cabeça.

Repetindo que adoro utopia na ficção. Tanto que escrevi até uma história super-utópica, O Planeta 9.0 - Conversa com o Extraterreestre, onde tudo é perfeito, maravilhoso e ótimo. Mas fica por aí. Na vida real e na política, é utopia zero.

Porque utopia é a costura seguindo sem a linha na agulha. Assim como o mito é a sombra no anão fazendo gigante no muro e o dogma é a ponte avançando antes de o rio nascer. Os três, compondo o trio tenebroso, a maligna trindade que já fez e faz tanta desgraça na política.

Marcelo Mário de Melo, jornalista e escritor.

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