A medicina e o homem da cobra
No mundo real, quando ocorre insucesso, é comum se perguntar onde foi o erro, pois casos semelhantes foram salvos na televisão......

Existe uma certa confusão conceitual entre erro e insucesso médico. Uma coisa é realizar uma cirurgia sem cuidados de higiene e desrespeitando a técnica, outra é ocorrer uma infecção, sempre possível quando barreiras de proteção são necessariamente rompidas, a despeito dos devidos cuidados. Uma coisa é prescrever um tratamento sem indicação para a doença diagnosticada, outra é observar um efeito colateral grave com um medicamento corretamente prescrito.
Os avanços da medicina contribuem para aumentar a média de vida dos que tem acesso a eles, mas a forma de divulgação das novas tecnologias e medicamentos induziu no subconsciente da população o conceito de que podem tudo. As séries de televisão, com boa assessoria médica, mostram a cura de casos aparentemente terminais no curto tempo do episódio, fortalecendo a ideia de que a medicina moderna pode realmente tudo. A realidade é diferente pois, apesar de poder muito, é limitada, cara e muitas vezes perigosa.
No mundo real, quando ocorre insucesso, é comum se perguntar onde foi o erro, pois casos semelhantes foram salvos na televisão. É verdade que doenças muito graves, até recentemente fatais, têm sido curadas. Infecções, autoimunidade, degeneração, defeitos genéticos, vários tipos de câncer estão sendo contidos, mas muitas vezes o contra-ataque envolve procedimentos também agressivos. São grandes cirurgias, imunossupressores, transplantes, terapias que envolvem riscos, sem garantia absoluta de resultados. Um mesmo tratamento oferecido a pacientes diferentes com a mesma doença pode ter como resultado a cura ou a morte, os dois estando certos.
O insucesso é sempre possível no dia a dia da medicina, mas é diferente de injetar produtos impróprios, em ambientes impróprios, de criar técnicas cirúrgicas sem submetê-las à aprovação, de prescrever medicamentos baseados em crenças ou interesses, como se voltássemos ao tempo do homem da cobra que oferecia remédios "contra tudo" nas feiras públicas. A cobra no pescoço era a estratégia de marketing para atrair a atenção dos passantes e vender chás e ervas de produção própria. Na banca, uma garrafa com um enorme verme, prova da eficiência do produto. Comprava quem queria, com total liberdade, mas baseados em informações falsas.
A maior oferta de postos de saúde para atendimento básico e o maior esclarecimento da população aposentaram o propagandista com a cobra, bem como o do óleo do pobre peixe boi do Amazonas que, vítima de notícia falsa sobre múltiplos efeitos curativos, quase foi extinto.
Tratamentos que atentam contra a saúde pública fazem refletir sobre os limites da liberdade para enganação, antes com o homem da cobra, hoje nas redes sociais.
Errar é humano, todo mundo sabe. O juiz pode condenar um inocente, o meteorologista pode prever chuva fraca na hora do temporal. Erra o eleitor ao escolher quem não tem compromisso com o bem comum e o economista divulgando o caos sem contar com o impacto da queda do desemprego. Erra o vidente e nem lembra que já divulgou o fim do mundo no ano passado. Até o criminoso quando esquece o detalhe do que seria um crime perfeito e vai parar na cadeia. O advogado pode errar menos, quando já sabe o placar apertado no supremo. O erro dos médicos tem repercussão direta e imediata sobre a vida, exigindo dupla, tripla checagem para ser evitado.
A medicina fundamentada em evidências científicas envolve a possibilidade de insucesso, mas o tratamento de "artrite reumatoide, infecção nos rins, viroses, agonia no juízo e pneumonia" com vitaminas, chás do homem da cobra, óleo do peixe-boi, suplementos, antiparasitários, hormônios e assemelhados não pode ser classificado como insucesso.
É erro mesmo.
Sérgio Gondim, médico