João Humberto Martorelli: anistia para o 8 de Janeiro? Não!
Se eram apenas baderneiros, estavam a serviço de uma ideia antidemocrática, e não me venham dizer que não sabiam o que estavam fazendo.

Em 1975, disputávamos o diretório da Faculdade de Direito do Recife. Nessa época, os militares no poder ainda prendiam, espancavam, torturavam e matavam os opositores do regime, entre os quais muitos amigos meus.
Ao depositar meu voto na urna, o professor que presidia a mesa de votação olhou para mim e disse, com regozijo, ele, que era nojento e asqueroso para nós, porque era defensor dos militares no poder e, provavelmente, beneficiário de muitos dos favores que a farda distribuía entre os acólitos da ditadura: vocês vão perder a eleição.
Era fato, a direção da faculdade, íntima dos militares, fizera uma campanha contra nós, a oposição, de quem dizia ser comunista, no mínimo, intimidando o corpo discente, e a derrota era certa.
Diante dessa constatação, eu não tive resposta melhor para aquele salafrário: é certo, vamos perder, mas Franco morre.
Era uma vitória do tempo, o caudilho espanhol agonizava, e a torcida geral entre nós era por sua morte mais rápida, porque também mais rapidamente se restauraria a democracia na Espanha.
Riscos para a democracia
A memória me vem assim, vívida, no contexto das defesas da anistia aos criminosos de 8 de janeiro. Porque eles são derivação inelutável desse clima militar que ainda hoje, 40 anos depois da redemocratização, toma conta do pensamento de parcela importante da população.
De um lado, os salafrários iguais aquele professor, que vivem conclamando a volta dos militares ao poder, proclamando o nome do torturador Ulstra, tramando golpes nos gabinetes e incitando o povo humilde, inocente, ignorante, a invadir as sedes dos poderes e depredar nossos símbolos.
De outro, os ingênuos que pensam que esse povo humilde, inocente e ignorante não tem culpa a apenar, esse povo que acampou junto aos quarteis e defendeu com insistência um golpe militar para impedir a posse do presidente eleito.
Se eram apenas baderneiros, estavam a serviço de uma ideia antidemocrática, e não me venham dizer que não sabiam o que estavam fazendo.
São piores do que os bandidos das torcidas organizadas, porque esses tomam como pretexto o futebol, enquanto aqueles agitavam contra as instituições do Estado democrático de Direito.
Diz-se que, entre eles, havia mulheres, idosos, pessoas despercebidas da gravidade dos seus atos, e que as penas ditadas nas sentenças do Supremo são elevadas.
Isso é outra questão, mas para ser discutida no âmbito dos autos, porque, no Estado democrático de Direito, a justiça é quem cuida da dosimetria das penas.
Que venham os recursos, mas não se desmoralize uma instituição básica da democracia, que é a justiça, pelo atalho hipócrita da anistia.
Lições da história
O Brasil já anistiou demais. Os militares continuam a incomodar a normalidade democrática porque lhes foi concedida anistia pelos crimes cometidos durante a ditadura, diferentemente do que ocorreu em outras democracias latino-americanas que, na mesma época, sofreram os bordões dos coturnos.
Essa contemporização com o crime atiçou as pessoas toscas, sem compromisso com a democracia, defensoras da ordem sem legalidade, da falta de liberdade como modelo de crescimento econômico e de organização social, de metralhar adversários políticos; não houvesse o culto irresponsável, inclusive entre civis, da volta dos militares, não teríamos sofrido a perturbadora passagem recente de desestabilização da democracia brasileira.
Não se venha dizer que os militares não entraram na canoa, pelo menos um chefe das Forças Armadas entrou.
Já é muito. Por que temos que dizer: Ufa!!!? E são militares muitos dos que deram sustentação ao ex-capitão.
Bem sei que os próceres e os torturadores da ditadura já não mais estão por aí, mas sua memória está, e contamina os atuais.
Há uma parte relevante da caserna salivando pela tomada do poder. Aqui não mais. Demos anistia aos militares torturadores, já vimos no que deu.
Se dermos anistia a quem mais quebrou a ordem democrática, a sociedade brasileira vai ficar eternamente refém do medo das ausências dos pais de família desaparecidos, dos filhos assassinados, da falta de liberdade.
Esse medo tem que acabar, e só acaba se a farda for devida e cabalmente enquadrada.
Exemplo da Espanha
Conta Rosa Freire, em seu belíssimo livro Sempre Paris, que, em 1981, o escritor Jorge Semprún foi a uma festa em Madri e perguntou o que havia de novo desde a morte de Franco.
Um amigo retrucou: mas Franco já morreu? No imediato pós-franquismo, o espanhol não tirava o olho do militar.
Golpes e tentativas de golpe se sucederam, até com a combinação de ex-agentes secretos, do Vaticano e de Washington.
Não nos esqueçamos de Trump comandando a América e da sua base tupiniquim carioca. A democracia somente se consolidou na Espanha com o retorno de Guernica do sublime Pablo Picasso.
Aqui não temos Guernica, mas as sete violentas estocadas em As Mulatas de Di Cavalcanti são a lembrança que devemos ter sempre em mente, quando alguém falar em anistia para esse povo.
João Humberto Martorelli, Advogado
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