OPINIÃO | Notícia

O homem de ouro

Na fase da abertura política brasileira, Sobral teve uma atuação de relevo no movimento "das Diretas Já". Participando do Comício da Candelária

Por DAYSE DE VASCONCELOS MAYER Publicado em 02/02/2025 às 7:00

Após cinco séculos, o Brasil ainda copia a mulher de Jó olhando para trás em momentos equivocados; entusiasmando-se com os esqueletos ou fantasmas esfaimados por corrupção, ignomínia e infâmia; atemorizando-se com discursos intimidativos do Primeiro Mundo. Todavia, mesmo em tempos de vendaval, é possível a salvação pelo exemplo interno: o jurista Heráclito Fontoura Sobral Pinto

Frequentador diário da Igreja, onde comungava todas as manhãs, Sobral Pinto aceitou, durante a ditadura do Estado Novo e a ditadura militar de 1964, defender Luís Carlos Prestes e Harry Berger. O segundo havia sido deputado pelo Partido Comunista Alemão com o nome de Arthur Ewert. Em 1935, durante o levante comunista para derrubar o governo de Getúlio Vargas, Sobral Pinto teve a coragem de denunciar as precárias condições em que Berger vivia na prisão, juntamente com a sua mulher: carentes de banho por mais de um ano, alimentando-se de restos deteriorados e apodrentando, nos seus quase dois metros de altura, num vão de escada de 60 centímetros. A tortura foi de tal ordem que afetou as faculdades mentais do preso até o final da vida. A esposa, inclusive, foi estuprada dezenas de vezes enquanto esteve aprisionada no Brasil.

Convém lembrar que o Brasil tem uma vocação excepcional para a tortura, como se ainda vivêssemos em tempos medievos. A memória dos homens ainda retém, no caso Berger, o momento em que Sobral Pinto, evocando os artigos 1º e 3º do decreto-lei nº 24645/1934 - primeiro estatuto jurídico brasileiro a tratar da proteção dos animais –, lembra que nem mesmo os irracionais viviam em condições tão precárias, insanas e inumanas.

Mas é preciso não esquecer que o jurista trazia consigo uma aptidão rara: a “soft power”, defendendo as suas ideias sem a cobiça de retaliação e desrespeito ao homem. Por isso, mesmo em tempos de insegurança, lutou pelo direito fundamental de acesso aos tribunais e fez da advocacia um protagonista essencial na defesa da liberdade e das garantias dos cidadãos.

O homem que não construiu nenhuma ponte aérea entre o Brasil e o exterior e oferecia pouca relevância ao dinheiro, à ideologia e às benesses do poder constitui o único exemplo brasileiro de recusa do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A indicação foi feita pelo presidente Juscelino Kubitschek. A justificativa apresentada por Sobral surpreende: não desejava que a iniciativa do Presidente fosse interpretada de forma injusta, isto é, por razões de interesse pessoal. Mas todos sabiam que a escolha de Juscelino privilegiava o notório saber, a experiência, competência e integridade.

Na fase da abertura política brasileira, Sobral teve uma atuação de relevo no movimento “das Diretas Já”. Participou, inclusive, do Comício da Candelária em 1984 onde defendeu o restabelecimento das eleições diretas para a presidência da República. Estava convicto de que “o lobo não tem medo de um cão latindo” (provérbio latindo).

Em 2013, sua neta Paula Fiuza lançou o documentário “Sobral – O Homem que Não Tinha Preço”. O curta-metragem é pouco conhecido do público. Afinal, num período da nossa história política em que o prestígio, o dinheiro carpido do povo e a corrupção se revelam valores maiores, o exemplo de Sobral Pinto não causa muito acendimento. Mas é preciso não esquecer que Carlos Lacerda, alcunhado de “demolidor de Presidentes” e tido como um político emblemático e problemático, sempre exteriorizou admiração pelo jurista. Tanto é assim que o denominou de “um homem de absolutos”.

Já no final da vida profissional e numa situação financeira difícil, Sobral Pinto foi informado de que o Governo havia criado para ele, por decreto, um cargo de defensor público honorário. Além de recusar o que denominou sinecura, o jurista deixou assente que jamais poderia aceitar dinheiro público sem contrapartida. Em sua maneira de pensar, o decreto era uma ignomínia. Ele sabia da existência, já naquela época, dos cupins dos cofres públicos e das máfias que se apropriam do dinheiro do contribuinte.

Que diria Sobral Pinto acerca das democracias mascaradas de hoje?

Não recordo quem afirmou que a nação “é uma comunidade de sonhos”. Infelizmente, os sonhos estão se convertendo em bordões ou slogans do tipo “drill, baby, drill”, modalidade de chute de Trump no Direito Ambiental. Não é sem razão que J.D. Vance, o vice-presidente, descreveu o discurso do presidente como “uma maneira dos diabos de começar os quatro anos de mandato”. Ele conhece os jogadores dessa partida: as grandes fortunas ou a elite financeira do mundo. Sabe, inclusive, que a Europa e a América Latina podem ser condenadas a viver num planeta construído pelos interesses do capital e dos revisionistas Putin e Xi Jinping. Inicia-se o primeiro tempo da peleja de construção de sentimentos de intranquilidade - pasto para o ódio e retaliações. Resta, todavia, uma esperança alimentada pela nossa história política: da teoria à pratica há uma distância considerável. Nesse caso, a “era dourada” do trumpismo poderá acabar numa estação de “acerto de contas” do homem “predestinado” - o escolhido, abençoado e salvo por Deus. Conhecemos esse tipo de religião e alogia.

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.

 

 

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