Pedro cunha: a fé sob ataque é a face mais cruel da ignorância
O Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa em 2024, um aumento de mais de 80% em relação a 2023

Recordo com uma nitidez dolorosa a primeira vez em que minha fé foi desacreditada.
Não era apenas uma palavra dita ao acaso, mas um golpe, preciso e cruel, que tentava desferir na alma um corte tão fundo quanto silencioso
Era como se o sagrado que me habita fosse reduzido a nada, um fardo a ser carregado e não uma luz a ser celebrada.
Essas marcas não são apenas histórias de ontem ou estatísticas frias de hoje; elas são feridas abertas, vivas, pulsando em cada olhar desviado, em cada riso de escárnio, em cada palavra que se veste de julgamento para se disfarçar de opinião.
Intolerância religiosa
O caso recente no Terreiro de Xambá, em Olinda, é um exemplo do que muitos de nós, praticantes de religiões afro-brasileiras, enfrentamos diariamente.
No dia 19 de janeiro, enquanto praticavam seu culto em paz, os frequentadores do único terreiro de nação Xambá na América Latina, reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco, foram alvo de ataques verbais de um grupo de fiéis evangélicos.
Para além dos insultos, esses atos carregam um histórico de violência simbólica e cultural que tenta apagar décadas de resistência e preservação.
O Terreiro de Xambá é mais do que um espaço de culto; é um símbolo da luta contra o apagamento da cultura afro-brasileira.
Fundado em 1930, ele carrega as raízes de um povo que se recusou a se calar diante da opressão.
Localizado no Portão de Gelo, o primeiro quilombo urbano do Brasil, sua existência é um ato de resistência em um país onde ser diferente, muitas vezes, significa ser alvo.
Crescimento dos casos
Os números não mentem. Em 2024, mais de 3.800 casos de intolerância religiosa foram registrados no país. Um aumento de mais de 80% em relação a 2023, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Cada registro é uma história de dor, mas também de coragem. É sobre uma mãe de santo que não abaixa a cabeça, sobre um babalorixá que enfrenta o preconceito, sobre crianças, jovens e idosos que ousam dançar ao som dos ilus ou atabaques.
É sobre mim e sobre você que resistimos todos os dias, mesmo quando a sociedade insiste em nos silenciar.
O que aconteceu no Terreiro de Xambá não é isolado: é um reflexo do que enfrentamos diariamente, a dificuldade de ocupar espaços, de praticar a fé em paz e de afirmar nossa identidade em um mundo que nos coloca à margem.
Mas, mesmo diante do ódio, escolho resistir. Cada ritual que celebro é uma reafirmação de quem sou. Cada canto que entoo é um grito contra a opressão.
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O peso do preconceito
Ainda assim, há dias em que o peso do preconceito parece insuportável. Dias em que me pergunto: até quando precisaremos justificar nossa fé?
Apesar disso, não deixo de lutar. Porque minha fé não é apenas uma escolha pessoal; ela é uma herança de luta, resistência e ancestralidade.
Ela me conecta com minhas raízes, com a força de quem veio antes de mim e enfrentou preconceitos muito maiores. Cada gesto, cada reza, é um ato de liberdade que nenhum ataque pode tirar.
Quando olho para o que aconteceu no Terreiro de Xambá, vejo mais do que uma denúncia de intolerância; vejo uma oportunidade de educar, de dialogar, de transformar. É preciso falar sobre isso, denunciar, mas também construir pontes.
A ignorância é a base do preconceito, e só o conhecimento pode desarmar esse ciclo de ódio.
Por isso, convido todos a refletirem sobre o que significa ser livre para acreditar. Não se trata apenas de permitir que cada um tenha sua fé, mas de garantir que ninguém seja atacado por isso.
Nossa diversidade religiosa é uma riqueza, não uma ameaça. E proteger essa diversidade é proteger a essência do que significa ser humano.
Minha fé é a minha fortaleza, mas também o grito que ecoa pela liberdade. A cada confronto com o preconceito, emergimos mais fortes, mais inteiros.
E juntos, somos indomáveis, como raízes que resistem às tempestades. Que o Terreiro de Xambá, com sua história carregada de força e resistência, continue a nos inspirar a lutar sem cessar, porque nossa fé é sagrada, e nossa luta, tão sagrada quanto.
Pedro Cunha, jornalista, especialista em comunicação pública e Optbí Ifá do Ilé de tradição Nagô Ará Abrìà.