Flávio Brayner: Da volubilidade teórica

Quando entrei na universidade, nos anos 70, vigia o domínio absoluto do marximo-leninismo (uma seita quase que exclusivamente acadêmica!)

Publicado em 14/01/2025 às 0:00 | Atualizado em 14/01/2025 às 9:58
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Passei a vida acreditando que a Universidade era o lugar do exercício da crítica: crítica como aquilo que se coloca entre a "realidade" (os pós-modernos nos acostumaram a grafar realidade sempre com aspas, por razões que desconheço, mas, por precaução, obedeço!) e a idealidade, entre o que está posto neste Mundo Fati e o que "poderia ser" (utopia).

Quando entrei na universidade, nos anos 70, vigia o domínio absoluto (nas nossas Ciências Humanas e Sociais) do marximo-leninismo (uma seita quase que exclusivamente acadêmica!) como instrumento de crítica teórica; antes mesmo de terminar meu curso, eu já era althusseriano e, superada a "doença estruturalista", me converti ao gramscianismo, acreditando na "hegemonia de uma nova cultura ético-política"; não demorou e tornei-me paulofreireano: sem "transitividade" da consciência ingênua para a crítica, não havia possibilidade de "transformação social".

Mais um pouco e cai perdidamente apaixonado pelos "frankfurtianos": enxergava na Razão (a "instrumental") a fonte dos males da "sociedade administrada". Atento ao andar das ideias, não hesitei em aderir ao foucaultianismo quando "descobri" que vivia numa "sociedade disciplinar" e que eu mesmo era uma vítima das "tecnologias do eu": aquele Sujeito e aquela Verdade, em que beatamente acreditara, tinham desabado (mas EU fazia sucesso em minhas aulas de filosofia desmontando aqueles conceitos!). Cheguei até a flertar com o habermasianismo, mas preferi investir no republicanismo arendtiano, e até escrevi um livro sobre o assunto!

Há, neste momento, várias opções que a CEASA das ideias me oferece: agabenianismo, honettianismo, sloterdjckianismo, lucferryanismo, mas não decidi ainda qual deles constituirá minha próxima "pièce de résistence": tiro uma pitada daqui, outra d´acolá, dou uma olhada num rótulo mais atrativo e vou caminhado entre as gôndolas (quero dizer, estantes) em direção ao caixa ou à porta de saída.

Lembro que na minha juventude a palavra "volúvel" era carregada de negatividade moral: ausência de firmeza, "maria-vai-com-as-outras" do consumo de ideias, "bosta n´água" do vai e vem intelectual. Mas observo que, se houve uma constante em minha vida, uma amarra que me desse um porto de ancoragem, esta foi a volubilidade com que aderi às diferentes seitas acadêmicas! Fui constante e fiel à minha própria volubilidade.

Descobri também que o papel universitário da "crítica" limitava-se a criticar a crítica anterior e, uma vez firmada como "crítica da crítica" poderia se constituir em seita, com seus epígonos e simpatizantes.

A crítica, concluo, não serve para transformar o "real" (com aspas) ou demolir o dogma, a autoridade e a tradição (como desejava Voltaire), mas para constituir fechados universos doutrinários, uns atacando os outros, num gostoso ambiente agonístico em que todos estão convencidos de que tocaram naquela corda do "real" (com aspas) que as seitas adversárias não tocaram.

Meus colegas desta outra seita chamada Ciências Exatas riem de tudo isto, e dizem para si mesmos que "nosso rigoroso objetivismo, nossa indesviável neutralidade axiológica nos poupa destas ideologias tão nocivas quanto ingênuas: coisa de sindicalistas sem compromissos com a verdadeira Ciência!"

Mais recentemente tive a infausta surpresa de saber que todas aquelas teorias que eu ingenuamente adotara, ao longo de minha vivência universitária, não passavam de expressões do eurocentrismo colonialista, de cartesianismo linear, de racionalismo imperial, e que, agora eu deveria adotar posições decoloniais, pós coloniais, pensar a partir das epistemologias do sul... Confesso que fiquei um pouco desnorteado, quer dizer desuleado (eita!, quase cai na armadilha linguística eurocêntrica!), mas aos poucos vou me acostumar.

O romancista baiano Antônio Torres -tão volúvel quanto eu- disse certa vez que "-Já fui católico, comunista, umbandista e acreditei até em psicanálise. Hoje só acredito mesmo em Loteria Esportiva!"

-Eu hein!

Flávio Brayner, p professor emérito da UFPE e visitante da UFRPE

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