Momentos jurídicos notáveis de 2024
Os bons ventos de 2024 sopraram do STF, não por acaso de seu mais recente integrante contaminado ainda pelos ares de fora da Corte.

2024 deixa algumas decisões memoráveis ao avesso. E outras memoráveis por isso mesmo.
O jovem advogado da tribuna teve direito a elogios pela performance, fato pouco usual apesar da proverbial cordialidade dos membros da Corte no trato com os patronos. Já dava para desconfiar. Mas a desconfiança de ligações íntimas da família da parte com os julgadores não reside exatamente nessa curiosa plêiade de elogios. A decisão de mérito é que foi estarrecedora. E justifica a crítica de toda natureza. Decidiu-se que a viúva não poderia manter-se na residência do casal. Esse era o pleito do recurso: retirar a viúva da moradia do casal, onde vivera longos quarenta anos com o de cujus. Não é difícil encontrar justificativa. Basta dizer que o direito de moradia não é absoluto, podendo ser mitigado na situação, porque a viúva recebia sólida pensão, e os herdeiros não tinham onde morar, tratando-se do único imóvel a inventariar. Mas onde está escrito que o direito de moradia da viúva não é absoluto? A lei não dá a mínima pista, sequer uma vírgula mal colocada que pudesse ensejar um bocadinho de interpretação. É coisa mesmo de interpretação no mínimo aleatória, ou buscada no caso concreto para se encaixar no pedido dos herdeiros. Nenhum direito é absoluto, é certo. Mas ponderemos uma coisa: se o de cujus tivesse a menor desconfiança de que sua mulher seria alijada da residência do casal, não teria ele disposto em testamento uma regra adicional de proteção? Se não o fez, foi porque confiava na lei. E a lei está aí para isso: para ter a confiança dos cidadãos. A pobre viúva não tinha conhecimentos, diferentemente dos herdeiros. Queria ver tirarem Matilde da Isla Negra ou Pilar del Rio da casa de Lanzarote. Atenção, Janja, cuidado com as pesquisas, porque isso pode definir sua residência pós-morte de Lula.
Outra decisão de arrepiar foi a que flexibilizou a regra do bem de família. Pela lei Sarney, o único imóvel de residência do devedor é impenhorável. No caso concreto, decidiu-se que o imóvel suntuoso, de luxo, não está protegido pela norma. Vende-se o bem e, com o produto, paga-se a dívida e o devedor adquire bem menos luxuoso para morar. Outra vez, o Tribunal distinguiu onde a lei não distingue. A matéria é obviamente de competência legislativa, até se entende como razoável a interpretação, para se dar mais eficácia ao conjunto de regras que regulam a inadimplência e assim fortalecer-se...o mercado. Todavia, ainda aqui, onde não existe sequer uma vírgula na lei atual a justificar a interpretação, vê-se que o Tribunal usou de casuística.
A casuística está acabando com a segurança jurídica. Nenhum país pode dar segurança jurídica a seus cidadãos e investidores, quando, em matéria de direito privado, normas tidas como intransponíveis são violadas de maneira ao mesmo tempo tão simples e assustadora. Sim, porque assusta ao intérprete ver as decisões tiradas do nada, com justificativas pueris, se incorporando ao direito brasileiro, e apontando para o caos.
Os bons ventos de 2024 sopraram do STF, não por acaso de seu mais recente integrante, ainda não contaminado, ou contaminado ainda pelos ares de fora da Corte. O Supremo ajudara a manter a histeria coletiva ante os militares ao ter decretado, lá atrás, que a anistia vale para os dois lados. Diferente da Argentina e do Chile, que não perdoaram os crimes da ditadura, aqui prevaleceu o entendimento tacanho de que os torturadores e assassinos mereciam esquecimento. Nós sabemos o que essa decisão ocasionou, vivemos ainda sob o medo de atos de força dos militares, aproveitadores toscos tentaram apossar-se da institucionalidade brasileira para tomar o poder, e mais teríamos não fosse a resistência democrática. Flávio Dino passou uma esponja sobre a vergonhosa decisão, que não pode ser mudada, e colheu o entendimento, quanto aos desaparecidos, de que ocultação de cadáver é crime continuado. Efeito da cultura - o filme Ainda Estou Aqui cutucou as estruturas - ou não, devemos celebrar a nova postura do Supremo no tema, e encontrar e punir os autores desses crimes. Não escaparão.
Ainda vem de Flávio Dino a postura severa contra a farra das emendas parlamentares. Após um vergonhoso pacto entre o Supremo, o Congresso e o Executivo, os parlamentares continuaram a golpear nosso dinheiro e a desviar dinheiro para seus bolsos. Isso tem que acabar. É imoral, indecente, é golpe contra qualquer moral popular. Dino enfrentou e barrou. Vamos a conferir se resiste. Cabe a nós acompanharmos e suportar a decisão.
Que 2025 abençoe o Judiciário.
João Humberto Martorelli, advogado